quarta-feira, maio 09, 2007

Tonino Guerra - três histórias-poemas

Tonino Guerra, Histórias para uma noite de calmaria, tradução de Mário Rui de Oliveira, Lisboa: Assírio & Alvim, 2002

11.
O Despertador

Um despertador exposto sobre um tapete cheio de pó era tudo quanto possuía, para vender, o pobre comerciante árabe. Durante dias, reparou que uma velha se interessava pelo relógio. Era uma bebuína, pertencente a uma daquelas tribos que voam com o vento.
«Desejas comprá-lo?», perguntou-lhe um dia.
«Quanto custa?»
«Pouco. Mas não sei se o vendo. Se este desaparecer deixarei de ter trabalho.»
«Então porque o tens exposto?»
«Porque me dá a sensação de viver. E tu porque o queres, não vê que lhe faltam os ponteiros?»
«Faz tiquetaque?», quis saber a velha.
O comerciante deu corda ao despertador fazendo soar um sonoro e metálico tiquetaque. A velha fechou os olhos e percebeu que, na escuridão da noite, podia assemelhar-se a um coração que bate ao lado do seu.

43.
Amou tanto

Agora era velha e não conseguia sentir-se tomada de qualquer sentimento em relação a coisa alguma, mas tinha amado muito. Esperava ainda encontrar-se com algum ser que se movesse sobre a crosta da terra.
Até que se enamorou pela fachada de uma igreja de Assis, decidindo mudar-se para aquela cidade. Era Inverno, e durante os temporais nocturnos, saía com o guarda-chuva para fazer companhia à igreja, plena de uma luz amedrontada.
Depois, chegou a Primavera, e todas as manhãs e todas as tardes, com as mãos, tocava as pedras quentes e enxutas. Foi um amor sereno e sem traições que durou até à sua morte.

62.
A cor do tempo

O convento tinha a forma de uma margarida. Desprendendo-se de um torre cilíndrica, cada cela formava uma pétala. Entre uma e outra cela, no pouco espaço de muro da torre que permanecia descoberto, havia uma fenda, fechada por um vitral colorido. Conforme a deslocação do sol em redor do convento, no interior do quarto cilíndrico, havia uma luz com a cor que jorrava do vitral que protegia a fenda atingida pelos raios de sol. Se a luz era azul era meio-dia, cor de laranja era já hora da ceia e assim para todas as outras horas do dia. De noite, a lua substituía o sol. No Inverno, com o céu encoberto, os monges passavam dias e dias sem saber a hora exacta e eram felizes, porque as suas vidas caminhavam de modo desordenado, especialmente no momento do encontro para o canto nocturno. Ou o levantar era demasiado cedo ou demasiado tarde e cada um acabava, assim, por cantar sozinho e os outros depois ou antes dele. Os cânticos solitários inundavam o céu até ao amanhecer.

dizem-me muito as três. a última é simplesmente perfeita. a segunda é triste, a primeira é desoladora.

embalo

Ontem à tarde adormeci pela primeira vez um bebé, o meu primo Rafael, de dois anos. Ficou em minha casa e a minha Mãe ia adormecê-lo, mas ele quis-me a mim. Claro que estava à espera de escapar, mas não lhe dei hipótese: li um bocadinho do Carocho-Pirilampo, embalei-o, brincou com o meu miau que tem patas de íman e, após algumas resmungadelas, lá ficou a dormir. Mas o acto de o adormecer lembrou-me uma outra pessoa, com quem dormi algumas vezes, porque me surpreendi a fazer coisas que lhe fazia. Cócegas leves no pescoço (com a mesma reacção: «Não» retumbante e aflito, mas engraçado, e um encolher rápido e coberto pela cabeça). E quando me fazem festas na cara atiro-me para morder, na brincadeira, felinamente (ou será mais serpentesmente?). Surgiu-me então a dúvida de saber se estas coisas eram minhas, se as aprendi com essa pessoa. Mas depois descobri que eram minhas porque as descobrira em mim com essa pessoa e agora podia repeti-las com outras, mesmo que noutras situações e graus.

segunda-feira, maio 07, 2007

manuscritos de eça


verdadeiras preciosidades, manuscritos de eça, que estavam guardados num cofre no Millenum BCP, foram encontrados e já estão disponíveis para download e, qualquer dia, disponíveis para visita na Biblioteca Nacional. para consultar e guardar.

aqui ficam os links e a primeira página de A Ilustre Casa de Ramires, o meu romance favorito do Eça.



A estória nenhuma

Em poema:

Era uma vez uma vez
Ou a vez nenhuma
Nesses tempos o tempo estava de férias
E o espaço era o vazio do nada.
Os seres não existentes faziam acções inexistentes
De quem ninguém não falava.

Era uma história como nenhuma outra.


Em conto:

Era uma vez uma vez, ou a vez nenhuma. Nesse tempo, o tempo estava de férias ou tinha emigrado, se é que alguma vez existiu. E o espaço era o vazio do nada de uma aldeia comum a todas as outras de norte a sul, passando pelo centro. Nesta aldeia não houve uma mulher sonâmbula que se levantava todas as noites e, com um cântaro na cabeça, ia à fonte buscar água, regressando transbordando de vida. E uma noite, essa mulher que não existia, pegou no cântaro e saiu até à ilusória fonte. No regresso, sempre sonâmbula em si, não retirou de cabeça e ao entrar em casa partiu-se e acordou-a com o contacto com a água fria. Mas nada disto aconteceu, claro, porque os seres não existentes não praticam acções – e estas são inexistentes. E ninguém não falava delas. Era uma estória como nenhuma outra.