quarta-feira, julho 27, 2011
Elegia para o Guano Jeremias
Não mais a mão no dorso recolhendo o calor
ou a vida dos bigodes e das orelhas a refilar.
Não mais virás a correr porque me sabes cá
e porque de mim se esperam todas as entregas.
Não mais teu olhar incorreto e longínquo
ou as almofadas em que pousas o peso leve.
Porque decidiste cruzar as sete encruzilhadas
que nos separam disto e doutro infinito qualquer.
Poema do Acordo Ortográfico
Pois o que havia de acontecer à língua
assim, sem mais nem menos, logo agora...
Qual será o factor, perdão, fator que o explica?
coisa tão inusitada, a mudança. Ou não?
Mas enquanto os Velhos do Restelo vociferam
e os defensores vivem a primavera da vitória,
as palavras chegam-nos despidas do velho,
límpidas e exatas no corpo que as diz.
Nada me pesa na ação, na atividade, no atual.
Adoto facilmente o novo, não sou cético - sou arquiteto
das origens renovadas pelo uso e desuso.
Faço coleção de pequenos meses, dias e estações
e de obras, ruas, sabedorias e pessoas superiores
que me surgem como querem que elas surjam.
Não hei-de, perdão, não hei de queixar-me
daquele sinal que separa os elementos que se querem casar,
porque vou fazer um inter-rail, pois sou pró-europeu
e sou super-resistente (até porque uso anti-histamínicos)
e gosto de ver amores-perfeitos pelas ruas em perspetiva,
e porque há tantos outros que se casam
num fim de semana ao pôr do sol:
autorretrato, coautor, cosseno, subregião
e até a minissaia fica mais longa, mas mais perto...
A todos aqueles que me lêem, perdão, leem,
saibam que encontrámos muitos casos giros
porque para o pelo para sair pelo pau onde pelo pêssegos
ou porque o egípcio vive no Egito e não no Egipto
e não é porque há reivindicações por lá.
E porque tudo isto vai já longo - verdadeiros heróis
que me creem de bem com esta paranoia
vamos sair para todas as rosas dos ventos,
olhar o maio deste acordo outonal -
- a dúvida é ficção desmontada dia a dia
e o sol ainda nos chama para o cor de laranja
lá fora.
terça-feira, julho 26, 2011
Desafio: 07
Tempo para balanço, mesmo antes de ir de férias. Talvez não leve computador comigo para Santarém e Lisboa, por isso mais vale ficar já. Mês de teatro, sobretudo. Mas também de série, alguns filmes e livros. E de baile de finalistas, pois então. E de alunos lindos a tirarem 19 e 20 no exame de Português, e outros igualmente lindos que ficaram mais abaixo. E os meninos do 9.º ano que lá deram o seu melhor (ou não).
Dos livros, coisas me obrigaram a protelar o trabalho, o sono (71, 74, 75, 76, 78 e 79), lágrimas até, o que não acontecia há uns tempos (71 e quase o 74). Muito os recomendo, esses de cinco estrelas, horas bem passadas, sobretudo A Rapariga que Roubava Livros, Sementes de Cabanas e Histórias Amorais para Crianças e Animais pela beleza (verbal e icónica) e originalidade de todos, pela sensibilidade do primeiro, pela imaginação do segundo, pela ironia do terceiro. Tempo para ler prendas (68 - Marta, 79 - António). Falta ainda o último do A. Lobo Antunes, já iniciado e a prometer.
Livros:
68. Livro, José Luís Peixoto, Quetzal, 264p.***(*)
69. O Mito de Sísifo, Albert Camus, Livros do Brasil, 200p.***70. Cantos Cativos, Arquimedes da Silva Santos, Campo das Letras, 240p.***
71. A Rapariga que Roubava Livros, Markus Zusak, Presença, 468p.*****
72. Inxalá – Espero por ti na Abissínia, Carlos Quiroga, QuidNovi, 96p.***
73. Ensaio Sobre a Cicuta, a partir das peças platónicas, João Diogo Loureiro e Miguel Monteiro, CECH-FESTEA, 58p.****
74. Hipólito, Eurípides, CECH-FESTEA, 78p.*****
75. Sementes de Cabanas, Philippe Lechermeier e Éric Puybaret, Kalandraka, 94p.*****
76. O Retrato, Nikolai Gogol, Quasi, 96p.*****
77. A Morte das Imagens, Helena Malheiro, Ulmeiro, 88p.**(*)
78. Histórias Amorais para crianças e animais, João Diogo Zagalo, Angelus Novus, 164p.*****
79. Quarto Livro de Crónicas, António Lobo Antunes, D. Quixote, 328p.*****
80. Boa tarde às coisas aqui em baixo, António Lobo Antunes, D. Quixote, 576p.***
120. Passangers, Rodrigo Garcia***(*)
Teatro:
Foi o mês de ir muitas noites seguidas ao Mimarte. Apenas não vi uma peça de Molière (estava no baile de finalistas), e gostei em particular da loucura erudita de Os Três Capitães (FC Produções), a comédia policial de inúmeros recursos de Os 39 Degraus (Statement), a destreza e beleza de Losing Grip (Desastronauts), da intensidade do texto de Hipólito (Thíasos) e da loucura alegorizante de A Festa dos Porcos (Jangada Teatro). Mas houve ainda A História de amor da Filha do Regedor (o Tin.Bra a surpreender), o cómico inteligente em A Herança do Jeremias (Teatro Regional Serra de Montemuro), os bonecos e as caixas em Se o mundo fosse bom, o Dono morava nele (CENDREV), O O Auto do Velho da Horta (Teatro ao Largo, fraquinho, embora com coisas giritas), Falatório do Ruzante de Volta da Guerra (PIF'H, com um texto genial e uma ideia de desdobramento quadrúplo interessante e o resto um terror) e um interessante Ensaio sobre a Cicuta (Origem da Comédia, a partir de Platão). O melhor foi ter ido com a Bruna, com a Tânia, ou sozinho, mas sempre com muita gente a encher o Rossio da Sé, ou Theatro Circo e o Museu D. Diogo de Sousa.
Concertos:
Capella Bracarensis e Les Petits Chanteurs de Guewenheim na Igreja de S. Victor, Braga. Foi muito bom e inspirador!
sábado, julho 23, 2011
3 poemas de Arquimedes da Silva Santos
Fragmentos de "Rapsódia da Guerra"
1
Em todos os portos do mundo
há sempre um velho marinheiro olhando olhando
íris esbranquiçada do sal do mar.
Em todos os portos há sempre um velho marinheiro olhando
e perscrutando o que as ondas segredam.
Que sobre as onsas do largo mar não há mais Paz
porque as tinge o sangue de corpos estilhaçados
corpos por minas despedaçados
retesados e hirtos e inchados
boiando sobre as ondas num sonho de Paz...
E velhos marinheiros ouvem águas murmurar
a elegia dos gemidos de jovens marinheiros...
****
Luso leixa mais de ouvir
Profecias de bandarras.
Em areais dos quibir
Fados de morte ou fugir
Soluçam sempre guitarras.
Dom sebastião primeiro
Não esperes pobre e nu.
Neste país marinheiro
Povo sai do nevoeiro
O desejado é só tu.
****
O guardador de pombas
Livra-as pela tardinha
E voam e revoam
Circulos espirais
Ruflam céleres
E tornam e retornam
Graves ao pôr do sol
Retombam nos pombais
Por fios de assobios
Ó guardador de pombas
1
Em todos os portos do mundo
há sempre um velho marinheiro olhando olhando
íris esbranquiçada do sal do mar.
Em todos os portos há sempre um velho marinheiro olhando
e perscrutando o que as ondas segredam.
Que sobre as onsas do largo mar não há mais Paz
porque as tinge o sangue de corpos estilhaçados
corpos por minas despedaçados
retesados e hirtos e inchados
boiando sobre as ondas num sonho de Paz...
E velhos marinheiros ouvem águas murmurar
a elegia dos gemidos de jovens marinheiros...
****
Luso leixa mais de ouvir
Profecias de bandarras.
Em areais dos quibir
Fados de morte ou fugir
Soluçam sempre guitarras.
Dom sebastião primeiro
Não esperes pobre e nu.
Neste país marinheiro
Povo sai do nevoeiro
O desejado é só tu.
****
O guardador de pombas
Livra-as pela tardinha
E voam e revoam
Circulos espirais
Ruflam céleres
E tornam e retornam
Graves ao pôr do sol
Retombam nos pombais
Por fios de assobios
Ó guardador de pombas
Arquimedes da Silva Santos, Cantos Cativos, Porto: Campo das Letras, 2003, p.17, 146, 161
domingo, julho 10, 2011
repeat... again... again...
«Worlds Apart», The Mostar Diving Club
«How to Say Goodbye», Paul Tiernan
segunda-feira, julho 04, 2011
Da Capo
Sementes de Cabanas, Philippe Lechermeier e Éric Puybaret
apesar de não me falares há quase um mês (a não ser por razões profissionais)
e de teres feito muitas escolhas que me excluem do tempo, da vida
e de preferires a companhia dos outros (o que eu entendo)
mesmo que não me perca em futilidades e vaidades
em divertimentos e frases fáceis
em comentários ao mundo
em coscuvilhices,
aqui ficam elas, em memória do que fomos.
domingo, julho 03, 2011
4 poemas de José Tolentino Mendonça
Primavera
a face breve
enuncia o esplendor
****
Coisas da tristeza
Uma palavra uma casa e esse rastro
ardendo lentamente a solidão
Oh quem pudesse ainda reconhecer
a doce mãe do soldado
nas dispersas sombras das vigias
Colhesse a rapariga lilases como outrora
as crianças demandassem os terraços
ao peregrino assomo do pastor
e o seu canto acordasse trémulas luzes
Mas o vento é um invasor impiedoso
destrona as divindades do bosque
****
****
Uma taça ática
Aos heróis pertenciam formas de veneração
talvez o aspecto do mundo antigo mais renegado
pelo nosso século extinto
Não seriam diferentes de nós:
temiam as estações severas
o idioma da névoa
o instante de vidro
onde a respiração se quebra
Mas a vida era para eles um sopro
que levavam sempre consigo
aurora incólume em expansão
Quando Orfeu cantou diante do Hades
as filhas de Danao interromperam a tarefa
Tântalo esqueceu fome e sede
Sísifo sentou-se sobre a pedra
e diz-se que até Caronte
por momentos abandonou
a nave onde nos leva
a face breve
enuncia o esplendor
****
Coisas da tristeza
Uma palavra uma casa e esse rastro
ardendo lentamente a solidão
Oh quem pudesse ainda reconhecer
a doce mãe do soldado
nas dispersas sombras das vigias
Colhesse a rapariga lilases como outrora
as crianças demandassem os terraços
ao peregrino assomo do pastor
e o seu canto acordasse trémulas luzes
Mas o vento é um invasor impiedoso
destrona as divindades do bosque
****
Frésias
Frésias são flores com cheiro a chá
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos
(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa
tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)
nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas
o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos
(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa
tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)
nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas
o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia
****
Uma taça ática
Aos heróis pertenciam formas de veneração
talvez o aspecto do mundo antigo mais renegado
pelo nosso século extinto
Não seriam diferentes de nós:
temiam as estações severas
o idioma da névoa
o instante de vidro
onde a respiração se quebra
Mas a vida era para eles um sopro
que levavam sempre consigo
aurora incólume em expansão
Quando Orfeu cantou diante do Hades
as filhas de Danao interromperam a tarefa
Tântalo esqueceu fome e sede
Sísifo sentou-se sobre a pedra
e diz-se que até Caronte
por momentos abandonou
a nave onde nos leva
José Tolentino Mendonça, A Noite Abre Meus Olhos, Lisboa: Assíro & Alvim, 2006: 20, 50, 109, 232
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