uma seleção longa, bem sei, mas ainda assim incompleta, de um poeta que me agradou particularmente nestas primórdios de verão. gostei muito, dos poemas com pássaros e flores, dos haikus, das reflexões metapoéticas, das relações intertextuais com pinturas, desenhos e esculturas de diversas proveniências... Há já uma nova edição da sua poesia completa, muito mais extensa que esta que li, mas enfim, era a que havia comprado, mas aqui fica a referência à nova. E aqui alguns dos muitos poemas:
Não forces a tua inspiração.
Deixa a poesia vir naturalmente
e não obrigues a mentir o coração.
Procura ser espontâneo,
A verdadeira beleza
está no que o homem tem de semelhante
com a natureza.
*
Descem as pálpebras sobre
o sono vigilante.
É preciso, amor,
dar um nome a esse instante.
**
À laranja não
se lhe tira a casca,
mas o coração.
**
Um dia voltarei à morada das papoilas
colher os versos vermelhos
que semeei na seara.
Um dia o vento estará maduro.
***
A face contra a face. O pulso
contra o peito. A pérgola
do leme a pino e a prumo.
****
Só o luto corrompe.
De amoras
maduras não te falo - trago-te
o verão num cesto
de morangos e papoilas, um
candelabro de medronhos
para as pulsões do inverno.
Digo-te:
a morte não nos pertence.
****
O verão deixa,
como herança, ao outono
um leque de folhas secas.
*****
Romãs; as últimas
brasas do incêndio
do verão.
*****
ÍDOLOS
São de barro, de fibra sintética e de barro, e de barro se diz também que alguns homens têm os pés. Aí reside, por isso, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade. E são, como igualmente se diz, objectos profanos.
Não há diferença entre o profano e o sagrado, nomes inventados, como tantos outros, pelo homem, para iludir a sua ignorância e preencher o intervalo, a que alguns chamam vazio, que há entre a vida e a morte. Por isso os próprios ídolos, que apenas valem como imagens artificiais projectadas no espelho da arte e da vida, aí encontram, umas vezes, a sua força, outras, a sua fragilidade. São como deuses sentados à entrada da morte e velando o seu próprio cadáver.
Não há diferença entre o profano e o sagrado, nomes inventados, como tantos outros, pelo homem, para iludir a sua ignorância e preencher o intervalo, a que alguns chamam vazio, que há entre a vida e a morte. Por isso os próprios ídolos, que apenas valem como imagens artificiais projectadas no espelho da arte e da vida, aí encontram, umas vezes, a sua força, outras, a sua fragilidade. São como deuses sentados à entrada da morte e velando o seu próprio cadáver.
*****
CIÊNCIA
O crescimento do homem pôde algumas vezes medir-se pelo comprimento ou altura das túnicas. O das mulheres sempre se mede pela roda das saias e dos seios. Ou pela altura das árvores e a fundura dos lagos que habitam no seu corpo.
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MÁSCARA FUNERÁRIA
DE TUTANCÁMON
DE TUTANCÁMON
Solene, entre o relevo
das serpentes que lhe guardam
o viço constelado,
é apenas uma esfinge,
o seu perfil. O cinzel
que lhe esculpe o lume
e o marfim do rosto. Tem
o azul como estigma, e o brilho
jovem que lhe doura
a cabeça é só
o esplendor do tempo,
não o seu. Também
de azul e ouro
se tingem as tardes
de outubro e são elas
que trazem atrelado o carro
funerário onde se abrigam
as máscaras dos vivos. O rosto
duvidoso e incorpóreo
dos enigmas sem data.
****
Pequenas Coisas
Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
***o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
COMPROMISSO
Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.
**
A MESMA CANÇÃO
A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.
*
Indício
Quando alguém morre
apuras o ouvido
em busca dum indício.
Fecha depressa
a janela
antes que ouças
dizer
que é por ti
que os sinos dobram.
Assim São as Algas. poesia 1950-2000, Albano Martins, Campo das Letras: 2000, p.24, 57, 105, 142, 243, 245-6, 251, 259, 277, 278, 348, 408, 411, 412, 416
2 comentários:
Ótimo blog, muitas leituras que eu não conhecia. Sucesso!
obrigado estamos sempre a descobrir coisas belíssimas, entre os livros!
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