sexta-feira, novembro 02, 2012

Breve antologia da poesia de Mia Couto






Despedida


Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores

Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo

Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal

E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe

Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne

Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve


**

Viagem


O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma

Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos


***

Mãe com criança no colo


No lugar do corpo onde esperou
sua vida frutificar
vai agora afagando a imobilidade

Aconchegando o menino morto
ela prepara seu ventre
para o inverso parto:
da luz para o útero,
da dor para o nada

Pendentes,
os seios
imitam outonais folhas
de mais imutável estação

E só o chão se espanta
por restar uma água
para á tristeza
dar o último redondo ventre


****

Companheiros

quero escrever-me de homens
quero calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho

e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados

deixo-vos
a paciência dos rios
a idade dos livros que não se desfolham

mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me às vezes viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça

por ora
basta-me o arco-íris
 
em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço

companheiros


Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Lisboa: Caminho, 1999, p.23-4, 68, 70, 77-8
 
 
 
Sono coloquial
 
 
Da velhice
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.

Esse descer de pálpebra
não é nemidade nem cansaço.

Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
 senso da poesia.
 
**
 
A Adiada Enchente
 
 
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.

Me  tornei  antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E  eu a esperei
como  um  rio  aguarda  a  cheia.
 
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as paalvras.
 
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
 
***
 
Doença

O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali trouxera em tempos.
 
E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supra-ventricular”
 
Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.
 
As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.
 
Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.
 
Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.
 
****
 
Silvestre e o Idioma
 
Silvestre quer saber
porque razão eu estrago o português
escrevendo palavras que nem há.
 
Não é a pessoa que escolhe a palavra.
É o inverso.
Isso eu podia ter respondido.
 
Mas não.
O tudo que disse foi:
é um crime passional, Silvestre.
 
É que eu amo tanto a Vida
que ela não tem
cabimento em nenhum idioma.
 
Silvestre sorriu.
Afinal, também ele já cometera
o idêntico crime:
todas as mulheres que amara
ele as rebaptizara, vezes sem fim.
 
Amor se parece com a Vida:
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida.
 
 
Mia Couto, Idades Cidades Divindades, Lisboa: Caminho, 2007, p.14, 22, 48, 68-9.
 
 
 
Ignorâncias Paternas
 
Altas horas,
já secos cuspos e copos,
meu pai dizia:
vou reparar o tecto.
 
E saía, para além da noite,
por interditos caminhos.
 
Minha mãe
retorcia a alma
nas magras mãos.
 
No peito, não no ventre,
a mãe vai gerando filhos.
 
Por trás dos cortinados,
seu olhar se desfiava
no longo rosário da espera.
 
Cegos para as suas fadigas
nós, os filhos,
pedíamos que nos alonjasse o medo.
 
E a vos dela acontecia
como inundação do rio:
lavando águas e tristezas.
 
Pobre do vosso pai, suspirava.
Que pena ela dele sentia
que, no escuro, em vão procurava.
 
A nossa casa, de tão alta,
não poderia nunca ter telhado.
 
Filhos deitados,
medos dormindo:
antes do meu pai regressar
já minha mãe
tinha reparado
as telhas todas do mundo.
 
**
 
A Coisa
 
O silêncio é o modo
como o marido habita a casa.

Vencida a porta, ao final do dia,
o homem assume porte e posses.
 
A mesa é onde os seus cotovelos
derramam milenares cansaços.

Nesse cotovelório
vai trocando vida por idade.

Partilha a medonhez dos bichos:
medo do silêncio,
mais pavor ainda das palavras.

Para a mulher,
porém, ele não é senão um menino
no aguardo de um agrado.

Em redor do silêncio
ele rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.

Em solidão,
o homem come,
merecedor do que lhe é servido.

Depois,
bebe como se fosse bebido,
tragado pelo vazio dos desertos.
 
Dono do seu despovoado,
entao, ele a agride, com ferocidade de bicho.
 
A mulher se estilhaça no soalho,
sombrio retrato da parede tombado.
 
No leito,
já servido o marido,
as lágrimas vão colando os seus fragmentos.
 
E a esposa volta a ser coisa.
 
***
 
A Casa
 
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
 
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
 
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
 
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
 
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
 
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam. 
 
****
 
Sementeira

O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.

Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.

No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.

Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.

Era a vida que ele, nele, desconhecia.
 
Mia Couto, Tradutor de Chuvas, Lisboa: Caminho, p.10-1, 46-7, 60-1, 71.


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