Despedida
Aves marinhas soltaram-se dos teus dedos
quando anunciaste a despedida
e eu que habitara lugares secretos
e me embriagara com os teus gestos
recolhi as palavras vagabundas
como a tempestade que engole os barcos
porque ama os pescadores
Impossível separarmo-nos
agora que gravaste o teu sabor
sobre o súbito
e infinito parto do tempo
Por isso te toco
no grão e na erva
e na poeira da luz clara
a minha mão
reconhece a tua face de sal
E quando o mundo suspira
exausto
e desfila entre mercados e ruas
eu escuto sempre a voz que é tua
e que dos lábios
se desprende e se recolhe
Ali onde se embriagam
os corpos dos amantes
o te ventre aceitou a gota inicial
e um novo habitante
enroscou-se no segredo da tua carne
Nesse lugar
encostámos os nossos lábios
à funda circulação do sangue
porque me amavas
eu acreditava ser todos os homens
comandar o sentido das coisas
afogar poentes
despertar séculos à frente
e desenterrar o céu
para com ele cobrir
os teus seios de neve
**
Viagem
O beijo da quilha
na boca da água
me vai trocando entre céu e mar,
o azul de outro azul,
enquanto
na funda transparência
sinto a vertigem
da minha própria origem
e nem sequer já sei
que olhos são os meus
e em que água
se naufraga minha alma
Se chorasse, agora,
o mar inteiro
me entraria pelos olhos
***
Mãe com criança no colo
No lugar do corpo onde esperou
sua vida frutificar
vai agora afagando a imobilidade
Aconchegando o menino morto
ela prepara seu ventre
para o inverso parto:
da luz para o útero,
da dor para o nada
Pendentes,
os seios
imitam outonais folhas
de mais imutável estação
E só o chão se espanta
por restar uma água
para á tristeza
dar o último redondo ventre
****
Companheiros
quero escrever-me de homens
quero calçar-me de terra
quero ser
a estrada marinha
que prossegue depois do último caminho
e quando ficar sem mim
não terei escrito
senão por vós
irmãos de um sonho
por vós
que não sereis derrotados
deixo-vos
a paciência dos rios
a idade dos livros que não se desfolham
mas não lego
mapa nem bússola
porque andei sempre
sobre meus pés
e doeu-me às vezes viver
hei-de inventar
um verso que vos faça justiça
por ora
basta-me o arco-íris
em que vos sonho
basta-te saber que morreis demasiado
por viverdes de menos
mas que permaneceis sem preço
companheiros
Mia Couto, Raiz de Orvalho e Outros Poemas, Lisboa: Caminho, 1999, p.23-4, 68, 70, 77-8
Sono coloquial
Da velhice
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.
Esse descer de pálpebra
Sempre invejei
o adormecer
no meio da conversa.
Esse descer de pálpebra
não é nemidade nem cansaço.
Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
Fazer da palavra um embalo
é o mais puro e apurado
senso da poesia.
**
A Adiada Enchente
Velho, não.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Entardecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou.
E eu a esperei
como um rio aguarda a cheia.
Gravidez de fúrias e cegueiras,
os bichos perdendo o pé,
eu perdendo as paalvras.
Simples espera
daquilo que não se conhece
e, quando se conhece,
não se sabe o nome.
***
Doença
O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali trouxera em tempos.
E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supra-ventricular”
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supra-ventricular”
Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.
com pesar de quem recebe condenação.
As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.
diziam da resignada aceitação.
Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.
Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.
nada tão belo em toda a sua vida.
****
Silvestre e o Idioma
Silvestre quer saber
porque razão eu estrago o português
escrevendo palavras que nem há.
porque razão eu estrago o português
escrevendo palavras que nem há.
Não é a pessoa que escolhe a palavra.
É o inverso.
Isso eu podia ter respondido.
É o inverso.
Isso eu podia ter respondido.
Mas não.
O tudo que disse foi:
é um crime passional, Silvestre.
O tudo que disse foi:
é um crime passional, Silvestre.
É que eu amo tanto a Vida
que ela não tem
cabimento em nenhum idioma.
que ela não tem
cabimento em nenhum idioma.
Silvestre sorriu.
Afinal, também ele já cometera
o idêntico crime:
todas as mulheres que amara
ele as rebaptizara, vezes sem fim.
Afinal, também ele já cometera
o idêntico crime:
todas as mulheres que amara
ele as rebaptizara, vezes sem fim.
Amor se parece com a Vida:
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida.
ambos nascem na sede da palavra,
ambos morrem na palavra bebida.
Mia Couto, Idades Cidades Divindades, Lisboa: Caminho, 2007, p.14, 22, 48, 68-9.
Ignorâncias Paternas
Altas horas,
já secos cuspos e copos,
meu pai dizia:
vou reparar o tecto.
E saía, para além da noite,
por interditos caminhos.
Minha mãe
retorcia a alma
nas magras mãos.
No peito, não no ventre,
a mãe vai gerando filhos.
Por trás dos cortinados,
seu olhar se desfiava
no longo rosário da espera.
Cegos para as suas fadigas
nós, os filhos,
pedíamos que nos alonjasse o medo.
E a vos dela acontecia
como inundação do rio:
lavando águas e tristezas.
Pobre do vosso pai, suspirava.
Que pena ela dele sentia
que, no escuro, em vão procurava.
A nossa casa, de tão alta,
não poderia nunca ter telhado.
Filhos deitados,
medos dormindo:
antes do meu pai regressar
já minha mãe
tinha reparado
as telhas todas do mundo.
**
A Coisa
O silêncio é o modo
como o marido habita a casa.
Vencida a porta, ao final do dia,
o homem assume porte e posses.
como o marido habita a casa.
Vencida a porta, ao final do dia,
o homem assume porte e posses.
A mesa é onde os seus cotovelos
derramam milenares cansaços.
Nesse cotovelório
vai trocando vida por idade.
Partilha a medonhez dos bichos:
medo do silêncio,
mais pavor ainda das palavras.
Para a mulher,
porém, ele não é senão um menino
no aguardo de um agrado.
Em redor do silêncio
ele rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.
Em solidão,
o homem come,
merecedor do que lhe é servido.
Depois,
bebe como se fosse bebido,
tragado pelo vazio dos desertos.
derramam milenares cansaços.
Nesse cotovelório
vai trocando vida por idade.
Partilha a medonhez dos bichos:
medo do silêncio,
mais pavor ainda das palavras.
Para a mulher,
porém, ele não é senão um menino
no aguardo de um agrado.
Em redor do silêncio
ele rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.
Em solidão,
o homem come,
merecedor do que lhe é servido.
Depois,
bebe como se fosse bebido,
tragado pelo vazio dos desertos.
Dono do seu despovoado,
entao, ele a agride, com ferocidade de bicho.
A mulher se estilhaça no soalho,
sombrio retrato da parede tombado.
No leito,
já servido o marido,
as lágrimas vão colando os seus fragmentos.
E a esposa volta a ser coisa.
***
A Casa
Sei dos filhos
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
pelo modo como ocupam a casa:
uns buscam os recantos,
outros existem à janela.
A uns satisfaz uma sombra,
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
a outros nem o mundo basta.
Uns batem com a porta,
outros hesitam como se não houvesse saída.
Raras vezes sou pai.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Sou sempre todos os meus filhos,
sou a mão indecisa no fecho,
sou a noite passada entre relógio e escuro.
Em mim ecoa a voz
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
que, à entrada, se anuncia: cheguei!
E eu sorrio, de resposta: chegou?
Mas se nunca ninguém partiu…
E tanto em mim
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
demoram as esperas
que me fui trocando por soalho
e me converti em sonolenta janela.
Agora, eu mesmo sou a casa,
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
casa infatigável casa
a que meus filhos
eternamente regressam.
****
Sementeira
O poeta
faz agricultura às avessas:
numa única semente
planta a terra inteira.
Com lâmina de enxada
a palavra fere o tempo:
decepa o cordão umbilical
do que pode ser um chão nascente.
No final da lavoura
o poeta não tem conta para fechar:
ele só possui
o que não se pode colher.
Afinal,
não era a palavra que lhe faltava.
Era a vida que ele, nele, desconhecia.
Mia Couto, Tradutor de Chuvas, Lisboa: Caminho, p.10-1, 46-7, 60-1, 71.
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