Processo
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por caqsa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
**
Epitáfio para Luís de Camões
Que sabemos de ti, se versos só deixaste,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?
***
As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.
****
Fala do Velho do Restelo ao Astronauta
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
*****
Regra
Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.
Os Poemas Possíveis, Lisboa: Caminho, 2011 (1966)), p.23, 36, 58, 84, 122
Forja
Quero branco o poema, e ruivo ardente
O metal duro da rima fragorosa,
Quero o corpo suado, incandescente,
Na bigorna sonora e corajosa,
E que a obra saída desta forja
Seja simples e fresca como a rosa.
**
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
***
Caminhámos sobre as águas como os deuses
E fomos deuses
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
e os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos.
Provavelmente Alegria, Lisboa: Caminho, 1999 (1970), p.20, 52, 71
Sem comentários:
Enviar um comentário