sexta-feira, setembro 08, 2006

Iniciação


Era sempre depois do banho que a sua vertente lúbrica se inflamava. No quarto, ao vestir-se, inventava uma série de histórias, e personagens malucas que o impediam de vestir-se e lhe faziam coisas indecentes. E terá sido numa dessas alturas que, ao comprimir-se contra uma almofada pequena, terá sentido o prazer e a dor de ejacular pela primeira vez, ainda sem saber muito bem o que era aquilo.
E foi aos poucos ganhando a consciência de todo um mundo dominado pela tentação do sexo. Sabia mais ou menos o que era. Um primo, estranhamente até era mais novo, já lhe tinha dito para que serviam todas as coisas de que ninguém falava à sua frente, mas sempre se considerara acima de qualquer acto de nojo como aquele, admitindo para si e para os colegas de brincadeira que seria um celibtário ou lá como se dizia. Claro que não era só nojice, mas sim a ignorância de como as coisas se faziam e quando as poderia começar a fazer. E perante uns colegas tão estranhamente precoces, que afirmavam ter-se já iniciado sozinhos na descoberta de alguns prazeres proibidos, embora ainda sem a presença de uma rapariga, sempre sozinhos, no interior dos seus quartos, António achou que seria interessante experimentar, embora sem saber muito bem como o fazer. Os filmes que passavam na televisão ajudavam a imaginar, e era pela imaginação que inventava as histórias com as personagens malucas que o impediam de vestir-se e que lhe faziam coisas indecentes. Quem o ensinou a manobrar o instrumento foi um colega de escola, no balneário, depois de uma aula de Educação Física. Perante a demonstração descomplexada, António reagiu dualmente, não conseguindo imediatamente decidir-se entre a proibição de um acto tão condenável e a atenção suspensa de tentativa de aprendizagem para poder repetir mais tarde, no sossego do seu quarto.
À noite, no quarto, imitou o colega, sem grande êxito, porque uma dor imensa não lhe permitia puxar a pele como o Nuno fazia. Um pouco desiludido e envergonhado, apagou a luz e deitou-se. Escusado será dizer que acordou com a sensação estranha de alívio molhado que caracteriza os sonhos eróticos. E nessa tarde, à vinda para casa, o Nuno quis saber se já experimentara e como fora. E aconselhou-o a imaginar coisas, a lembrar-se daquelas cenas dos filmes e das novelas, das raparigas. E nem precisava de forçar, de puxar muito. Com o tempo aquilo ía ao sítio.
Não foi nessa noite nem nas seguintes, António não queria experimentar e dizia que queria ser como os padres. Mas nesse fim-de-semana uma visualização fê-lo mudar de ideias e voltar a ter os seus pensamentos lúbricos. Ouvira, no jantar, a Mãe falar dos novos vizinhos do lado, um casal que estava a tentar engravidar e que tinha vindo passar uns dias à aldeia. E agora, ao ir fechar as janelas do seu quarto, viu, na janela da casa ao lado, um homem nu por cima de uma mulher, ambos com uma expressão de dor intensa, sem conseguirem soltar-se. Sentiu subitamente o latejar do seu membro ficando erecto, ajoelhou-se, sem desfitar a janela da casa e começou devagarinho a experiência, até quase berrar perante a sensação de prazer que o invadira.
Foi assim que começou, a pouco e pouco, a explorar os mistérios do seu corpo e a sua sexualidade. E continuou o trajecto de várias formas, sempre secretamente,
Uma tarde, na altura em que os livros que tinha já tinham sido relidos, foi à estante dos livros dos pais, onde já só restavam as enciclopédias ilustradas e os livros de culinária, pretos, com pratos tão estranhos que a Mãe nunca fizera nenhuma receita por eles, e alguns livros de capas grossas e letras doiradas. Um dos livros que achou por bem ler foi Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Com um título daqueles só poderia ter sexo. E tinha, encoberto. Copiou todas as passagens que achava excitantes para um caderninho preto que escondia atrás dos seus livros de escola, deliciado por possuir secretamente as provas da sua própria ousadia.
Mas não chegou. Sabendo que havia mais livros em casa, foi procura-los na caixa que o pai guardara debaixo da mesa do telefone, pois, como ele dizia, já eram livros velhos e a Mãe concordava, dizendo que só estavam a enfeiar a casa. Na caixa, agora aberta, estavam romances, claro. E no fundo da caixa, alguns com capas e títulos indiciadores do seu conteúdo. Fascinado, retirou apenas esses, sabendo que do risco que corria, e escondeu-os no guarda-fatos. À noite, antes de dormir, lia sempre um bocado, às escondidas, e acordava sempre transtornado com os sonhos que tais personagens e histórias. E ia copiando as passagens mais impressionantes, o que envolvia uma dificuldade enorme de selecção, pois o sexo estava página sim página sim nesses livros.
Foi também por essa altura que o pai lhe ofereceu uma televisão velha para pôr no seu quarto. Sextas-feiras à noite, aos poucos, foi vendo séries, programas, filmes que já não o elucidavam mas que o incendiavam. E começou então a sua monumental obra. Não, não escreveu um romance erótico baseado nas suas experiências platónicas de observador nem se tornou um Don Juan. Tinha já, na altura, uns catorze anos quando, num veio de inspiração, começou a fazer uma revista. No início não sabia muito o que fazer, como, mas começou por dobrar uma série de folhas A4 a meio, agrafou-as no meio e deu-lhe um nome: Sex, em inglês, sempre era mais universal (claro que essa revista era só dele, para ele, ninguém sabia da sua existência). Na capa teria de pôr uma fotografia e algumas frases, como as revistas que a Mãe comprava todas as semanas, ou a irmã mais velha, que agora tinha a mania de comprar uma certa revista que falava de todos os ídolos das raparigas na idade parvinha da adolescência. Aliás, foi a ver essas revistas teve a ideia e começou a recolher material. Todas as sextas a Mãe deitava a revista no caixote do lixo, todos os sábados, António levantava-se mais cedo e rasgava as folhas que lhe interessavam e deixava a revista como se intacta estivesse, para ninguém desconfiar. Nas revistas da irmã nunca se atreveu a tocar, até inventar um pequeno acidente com a caixa em que ela as guardava, deitando-lhe fogo, mas tendo já antes retirado tudo o que lhe interessava.
A construção das revistas foi-se tornando uma obsessão sem precedentes na sua vida. Fazia quatro por ano, com cerca de trinta páginas cada. E ao todo fez doze. A recolha feita era nas revistas, nos jornais, nos catálogos de roupa que a Mãe recebia, mas também nas revistas diferentes das da Mãe que a avó comprava, e, qual arca dos tesouros, algumas revistas para adultos que um tio guardava escondidas no guarda-fatos, mas desde que ele fora trabalhar para França, sem data para regressar, faziam as delícias de António.
Era à noite que António trabalhava nas suas revistas. À luz do candeeiro, em frente à janela onde vira o jovem casal que queria engravidar. O afinco que colocava no trabalho seria facilmente provado se pudéssemos ver qualquer um desses exemplares únicos, escritos à mão e com fotografias coladas com fita-cola nas pontas. Escolhendo uma ao acaso, a número sete, tem na capa uma foto de uma mulher sorridente com uma camisa meia transparente e um homem à sua frente, a olhar para ela, em tronco nu. Segue-se um índice e depois vários artigos: “O Beijo ao longo dos tempos” (provavelmente retirado de uma das tais revistas para donas de casa…), uma entrevista com um actor português que participou numa novela brasileira e que terá feito umas cenas quentes, outro artigo chamado “Filmes Proibidos (continuação)”, ilustrado com fotografias de O Império dos Sentidos e outros, segue-se ainda um desdobrável de roupa interior masculina e feminina encimado por uma nota: “Extra”, e depois páginas inteiras de revistas recortadas e coladas falando de “Sexo criativo”, “Sou louco por louras”. Por fim, após algumas páginas de excertos dos livros que já havia lido, ele próprio escreveu dois “Contos Eróticos”, terminando a revista com um elucidativo “Na Próxima Revista”. É interessante ler os seus contos. O primeiro chama-se “A Primeira vez” e é a história de uma mulher que passeia por um jardim e que é possuída por um desconhecido numa ponte. Mas a história evolui para uma relação matrimonial, para menáges e outras trapalhadas que acabam em bem para todos. O outro conto chama-se “A Festa de Aniversário” e conta a história de uma mulher que faz anos e que durante a festa seduz o pianista da festa, acabando por “conduzi-lo para a cozinha”, onde ele acaba por “atirar-se a ela, despindo-a e despindo-se a si próprio também” e o resto que se adivinha.
Seria inútil descrever ainda a quantidade de brindes que as revistas oferecem: livro com filmes aconselhados, cartas com fotos de artistas nus, etc.
Poder-nos-á parecer estranho tanto homem e tanta mulher. De facto, a revista não faz distinção sobre o público, que era apenas ele. Talvez lhe interessasse o sexo no seu pleno e não apenas um dos seus intervenientes…
Depois de tudo isto, resta talvez dizer que o António morreu aos vinte anos, num acidente de viação. Ao arrumarem o seu quarto, descobriram uma caixa que dizia: ao Nuno. Entregaram-ma ontem e hoje e todos os segredos de António, as revistas, o caderninho preto e o seu diário, onde estão todas as informações que aqui apresentei, acabaram por ser reveladas. Ou talvez não. Nem todas. Mas a quem interessam as verdades quando toda a gente as tenta esconder?
Maio de 2006

2 comentários:

Milai disse...

explica o porquê da criação deste texto...onde te inspiraste...

tulisses disse...

pois, foi uma ideia assim como que brilhante que me surgiu. nada de autobiográfico, não penses! e até me parece bastante interessante... deu um trabalho doido por estar a inventar tudo do nada, por isso não foi revista grandemente... e pronto...