segunda-feira, dezembro 31, 2012

Desafios 2013

Decidi também aderir a alguns desafios de leitura, pois tive preguiça de ir procurar e, como confio neste blogue e nas palavras/propostas da Célia, achei bem, para alterar o modelo dos últimos anos.
Assim, tentarei em 2013:
 
chegar ao Mt. Everest (a pilha de livros que esperam vem já de 2001 e são imensos – e espero este ano andar muitíssimo controlado nas compras),
 
fazer o Bingo (título com número – O 13.º Sol de Daniachew Worku, sugerido por alguém – O coração é um caçador solitário de Carson McCullers, ficção histórica – A Obra ao Negro de M. Yourcenar, bestseller – 2666 de Roberto Bolaño e viagens – A Máscara de África de V. S. Naipaul) e
 
cumprir o Monthly Key Word, com as seguintes hipóteses:

janeiro – Um homem parado no inverno, Baptista-Bastos
fevereiro – O coração é um caçador solitário, Carson McCullers
março – A Casa Verde, Mario Vargas Llosa
abril – O Jardim do Éden, Ernest Hemingway
maio – A Criação Do Mundo, Miguel Torga
junho – Morrer ao Sol, Peter Palangyo
julho – O cheiro da noite, Andrea Camillieri
agosto – O Príncipe das Nuvens, Gianni Riotta
setembro – Adeus, Azules, António Murteira
outubro – O Medo do homem Sábio, Patrick Rothfuss
novembro – O 13.º Sol, Daniachew Worku
dezembro – Pela Estrada Fora, Jack Kerouac

Desafio 12:12


E assim se chega ao fim de mais um ano de desafio. 2013 será diferente, este modelo esgotou-se :)
A ideia deste ano era ler certos autores e tal, mas foram sendo substituídos por outros e muitas obras se foram impondo ao ritmo dos dias - e até em galego! 140 é muito bom, claro! E filmes, numa meta histórica para mim: um por dia, 366! Mas há ainda tanto para ler/ver nas estantes e até no chão... haja vida para tanto ;)

Livros:

126. O País dos Outros. A Poesia de Rui Knopfli, Fátima Monteiro, IN-CM, 200p.****
127. Caliban 1 e 2, 68p.*****
128. O Comboio das Cinco, Luís Afonso, Abysmo, 88p.****(*)
129. Manhã Submersa, Vergílio Ferreira, Europa-América, 176p.****(*)
130. Alegria Breve, Vergílio Ferreira, Amigos do Livro, 224p.*****
131. Contos, Vergílio Ferreira, Quetzal, 240p.*****
132. Na Tua Face, Vergílio Ferreira, Círculo de Leitores, 230p.*****
133. Escrever, Vergílio Ferreira, Bertrand Editora, 280p.*****
134. Memorias dun Neno Labrego, Xosé Neira Vilas, Edicios do Castro, 192p.*****
135. José Saramago – 90 anos 90 palavras, V.V.A.A., Caminho, 56p.*****
136. A Aventura da Memória e Outros Contos, Voltaire, Estrofes & Versos, 140p.*****
137. O Ladrão de Palavras, Francisco Duarte Mangas, Caminho, 28p.****
138. Em Roma Sê Romano, Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, Caminho, 230p.****
139. Poesia, João-Maria Vilanova, Caminho, 110p.***(*)
140. Tiago na toca e os Poetas, Tiago Bettencourt, 32p.****

Filmes:

345. Anna Karenina, Joe Wright*****
346. Leaves of Grass, Tim Blake Nelson***(*)
347. Sint, Dick Maas****
348. The Art of Gettinh By, Gavin Wiesen****(*)
349. Ciao, Yen Tan***(*)
350. The Chronicles of Narnia:The Voyage of the Dawn Treader, Michael Apted****
351. The Three Musketeers, Paul W. S. Anderson****
352. Dear John, Lasse Hallstrom***(*)
353. Half Nelson, Ryan Fleck*****
354. Teeth, Mitchell Kichtenstein***
355. The Hobbit: An Unexpected Journey, Peter Jackson*****
356. Ken Park, Larry Clark**(*)
357. The Inheritance, Robert O'Hara*(*)
358. Bridget Jones: The Edge of Reason, Beeban Kidron****(*)
359. Poulet aux prunes, Vincent Paronnaud*****
360. Kids, Larry Clark***
361. The Brave One, Neil Jordan****
362. The Words, Brian Klugman*****
363. Cars 2, John Lasseter***
364. Frankenweenie, Tim Burton****(*)
365. Assim Assim, Sérgio Graciano****
366. Putas Marcianas, José João Silva**

outros:

Perdidamente Florbela, de Vicente Alves do Ó, com Dalila Carmo, Albano Jerónio e Ivo Canelas, entre outras. Perdeu-se no argumento, porque de resto estava muito bem!

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Poema de Natal 2012



Quando um homem quiser - José Carlos Ary dos Santos

Tu que dormes a noite na calçada de relento
Numa cama de chuva com lençóis feitos de vento
Tu que tens o Natal da solidão, do sofrimento
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que dormes só no pesadelo do ciúme
Numa cama de raiva com lençóis feitros de lume
E sofres o Natal da solidão sem um queixume
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher

Tu que inventas ternura e brinquedos para dar
Tu que inventas bonecas e combóios de luar
E mentes ao teu filho por não os poderes comprar
És meu irmão amigo
És meu irmão

E tu que vês na montra a tua fome que eu não sei
Fatias de tristeza em cada alegre bolo-rei
Pões um sabor amargo em cada doce que eu comprei
És meu irmão amigo
És meu irmão

Natal é em Dezembro
Mas em Maio pode ser
Natal é em Setembro
É quando um homem quiser
Natal é quando nasce uma vida a amanhecer
Natal é sempre o fruto que há no ventre da Mulher.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

3 poemas de João-Maria Vilanova




Canção de Amanhecer Maio

Céu rente
escasso
e o xinguilar do vento
dorido
por entre as frestas.
Tal se cacimbo
pai ou irmão de longe
regressasse
teu marufo depões
em nossa mesa
tua oferenda.

**

Canção do Pequeno Discípulo

Chuva
deixa reaprender teu gesto
quando madrugada
os dedos tão de leve
sábia vinhas
batucar meu zinco.

Rola
deixa reaprender teu gesto
quando tarde estreita
a rouca tua voz certíssima
contrapontavas
na mulemba.

Noite
deixa reaprender teu gesto
quando calidamente
a veste tua única veste nos trazia
para com ela
amortalharmos a tristeza.
***

Canção com Sabor de Areia

Tempo
que na brisa partias
entre quintais de aduela
cajueiros
e o rugido distante
do mar
na calema

Onde o nocturno rumor
no capinzal
junto à linha?


João-Maria Vilanova, Poesia, Lisboa: Caminho, 2004, p.21, 32. 42.

sexta-feira, dezembro 14, 2012

Anna Karenina e o prazer...


... da leitura e da música!

Ainda por causa desta onda de amor ressuscitado por «Anna Karenina», lembrei-me desta passagem. E lá ainda duas faixas, à sorte, da banda sonora do filme - em «Clerks» ouve-se o comboio ;)
 
 
 
 


Esta aversão à leitura é ainda mais inconcebível, se pertencemos a uma geração, a uma época, a um meio, a uma família em que a tendência era exactamente para nos impedir que lêssemos.
- Para de ler, vais estragar os olhos!
- Vai lá para fora brincar, está um dia lindo.
...
 - Apaga a luz! Já é tarde!
Nesse tempo, os dias estavam sempre demasiadamente bonitos para os desperdiçar com leituras, e as noites eram demasiadamente escuras.
Note-se que, quer se lesse quer não se lesse, o verbo já era conjugado no imperativo. Mesmo no passado já era assim. De certo modo, ler era um ato subversivo. À descoberta do romance acrescia a excitação da desobediência à família. Era um duplo esplendor! Ah, a magnífica recordação de horas de leitura às escondidas, debaixo dos lençóis, à luz da lanterna. Como galopava a Anna Karenina ao encontro do seu Vronski, àquelas horas da noite! Amavam-se um ao outro, o que já era magnífico, mas amavam-se enfrentando a proibição de ler, o que era ainda melhor! Amavam-se contra a vontade do pai e da mãe,contra o trabalho de matemática por acabar, contra a redacção, contra o quarto por arrumar, amavam-se em vez de irem para a mesa, amavam-se antes da sobremesa, preferiam estar um com o outro a irem ao futebol ou a apanharem cogumelos… tinham-se escolhido um ao outro, nada mais queriam que estar um com o outro… meu Deus, como o amor é belo!

E como um romance se lê num instante!

E acima de tudo lemos contra a morte.


Daniel Pennac, Como um Romance

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Anna Karenina


Count Vronsky: I love you!
Anna Karenina: Why?
Count Vronsky: You can't ask Why about love!

 






Ontem, pelas 14.30, eu ia ver «Anna Karenina», em estreia nacional. Ia, mas avisaram-me logo que talvez não fosse possível, porque ainda não tinham experimentado a fita na máquina e tal. Mas, quase vinte minutos depois, deu (cortaram depois o intervalo, para compensar). E uma senhora que ia ver o «Amanhecer» acabou por vir também - não se deve ter arrependido, seguramente. Isto porque o filme é uma experiência artística difícil de definir, melhor, difícil de igualar.
 
Quando temos muitas expectativas sobre alguma coisa, é costume ficarmos desiludidos. Aqui eram muitas. Primeiro porque era de um dos meus realizadores favoritos, que já nos deu outros dois (pelo menos) grandes filmes que fazem parte da minha lista de favoritos: «Pride and Prejudice» e «Atonement», depois porque tem Keira Knightley (Anna) , a mesma que protagonizou os dois filmes acima referidos, com Jude Law (Karenin) a acompanhar (de quem gosto muito desde que o vi nos filmes de Anthony Minghella - «Breaking and Entering» e «Cold Mountain») e Matthew Macfadyen (Oblonsky), que já fora o amor da vida da personagem de Keira em «Pride and Prejudice» e agora passa a ser o irmão, entre outros atores interessantes. Mais ainda porque a banda sonora está a cargo de Dario Marianelli que, pasme-se, já tinha feito as dos dois anteriores filmes também (e a de «Atonement» é das criações mais fantásticas de sempre para filmes e não só). Caso para dizer que em equipa vencedora não se mexe. E, como se compreendeu já e se verá a seguir, não fiquei nada desiludido.
 
Por fim, a adaptação de um dos grandes romances da humanidade, de Tolstoi, que li já há alguns anos, mas que conservo na memória: pelo fascínio de Oblonsky, pela busca de uma dignidade por parte de Levin, pelo amor e pelo sofrimento de Anna. Tinha visto este ano uma adaptação boa do romance, num filme de 1997 com Sophie Marceau e Sean Bean. Mas achei-a um pouco rápida, por vezes superficial, embora os protagonistas estivessem ótimos. Neste não há um Sean Bean - que agora já só poderia ser um Karenin - mas um Aaron Taylor-Johnson que está bem no que tem de fazer.
 
Mal o filme começa, temos a noção de que algo de diferente ali vem. Ousado. Sim, direção artística e fotografia são geniais: haverá o luxo, a sumptuosidade, os mármores, os dourados das paredes e dos objetos, os veludos; o guarda-roupa e a maquilhagem exigidos e perfeitos: os vestidos de cores tanto fortes como pálidas, os casacos com peles, as fardas feitas a preceito, os penteados daquela gente, as joias... Sim, há a câmara virtuosa que desliza, que acompanha, que segue em várias direções sem os cortes costumados (que já havia nos outros filmes dele, mas aqui mais, talvez). E um pouco daquilo que já nos havia habituado: a atenção aos pormenores, as pequenas coisas que de repente ganham uma significação extraordinária - só um exemplo: o leque que Anna abana enquanto vê a corrida de cavalos produz o som dos próprios cavalos em movimento, mas também poderá ser o do seu coração. Essa câmara obsessiva é de tal modo significativa que permite uma economia fantástica no relato de muitos acontecimentos: o escritório onde se encontram certas personagens torna-se no restaurante onde elas mesmas combinaram encontrar-se horas depois, os papéis de uma carta rasgada tornam-se neve; câmara acompanhando a valsa de Anna e Vronsky (numa cena belíssima, mas belíssima de chegar às lágrimas só pela emoção estética) apercebemo-nos de que não foi, afinal, apenas uma dança, mas a noite toda juntos, porque vemos Kitty, por breves momentos, sempre, com um par diferente de cada vez que aparece, sempre à espera que os outros se larguem. Coreografias: sim, muitas. Não apenas a do baile, a da receção com o fogo de artifício, mas de tudo – o filme tem momentos em que tudo se sincroniza, como se se tratasse de um bailado (ou não fosse a Rússia um país com história na dança), são os trabalhadores de Oblonsky, são os trabalhadores com Levin… E o comboio, obsessão que vai percorrendo toda a história, nos brinquedos, nos espelhos, nos sonhos, nas viagens feitas efetivamente, e que vai ser determinante, como é sabido, no final, é até incorporado na banda sonora, brevemente, já como Marianelli fizera com a máquina de escrever em «Atonement». A música é, aliás, um dos aspetos mais emocionantes do filme… a intensidade e a beleza com que foram feitas captam algo da cultura russa sem trair o estilo próprio do autor. E as cenas de amor, perfeitamente desenhadas, para mostrar a felicidade, embora pairando uma certa mão de tragédia, são também belas.
 
É talvez este tom de tragédia que estará na opção de uma filmagem diferente. Lars Von Trier, há uns anos, apostou fazer «Dogville» num palco, em que as casas estivessem desenhadas no chão, quase sem adereços mais. Aqui, os adereços são aos milhares, claro, mas quase tudo foi feito também numa sala de teatro. Não se espantem, portanto, por verem cortinas, cadeiras, palco, bastidores – aqui vivem sobretudo os do povo, os que vivem numa Rússia à beira da revolução e não sabem o que ela é, o que ela promete, e quando sabem nem sabem se a querem. Teatro, portanto, pois a vida é teatro, já se sabe também há muito. Para que não se esqueça tudo aquilo que anda em torno da história. E se tudo se passa naquele sítio, temos painéis que se levantam, portas que se abrem ou se fecham, personagens que passam de um sítio a outro, tudo de uma forma mágica e económica da narrativa, criando uma fluidez inédita, que o teatro tem explorado e que o filme também faz. Tragédia para quem está preso naquele mundo sugerido pelo teatro, mas liberdade para Levin, a única personagem que inicialmente anda pelas paisagens exteriores, pelo mundo real, para onde leva Kitty…
 
Nada a dizer do elenco, a não ser que é muito bom. Muito se disse sobre Keira não poder ser uma boa Anna Karenina. Sim, ela não é boa, é perfeita e as nomeações para prémios já surgiram. Jude Law, que poderia ter sido Vronsky há uns anos, está ótimo na sua contenção, na sua «santidade». Não referi ainda, mas faço-o agora: Domhnall Gleeson é um Levin perfeito, assim como muito bem estão Kelly Macdonald, Emily Watson, Michelle Dockery, além de Matthew Macfadyen e Aaron Taylor-Johnson, já referidos.
 
Fidelíssimo ao livro, a história está toda ela no filme. Toda ela, de uma forma ou outra, sem rapidez no essencial, no que em muitos filmes me leva a perguntar «de onde vem tanto amor?». Aqui há a perseguição, o desespero, a culpa por não ter feito nada ainda, o desespero, a entrega. E tudo o que isso provocará. Há os boatos, o falar dos outros (que bem feitas estas cenas, com as personagens paradas, extáticas, ou só com o som de palavras sussurradas, que não se entendem, até subirem de tom e se tornarem acusadoras), que contrasta com o silêncio do jogo de cubos onde Levin e Kitty finalmente se entendem.
 
Poder-se-á ler por aí críticas de senhores (supostamente) entendidos em cinema. Um dos que li classifica o filme como «razoável». Quem é crítico de cinema tem uma certa tendência para escrever coisas muito más sobre os filmes, muitas vezes só destaca pela positiva filmes enfadonhos, mesmo, de muita política, de senhores cujo nome não pode ser tocado. Está-lhes no sangue, ou na carteira, não sei. Dizer que este filme é razoável é, no mínimo, dizer incompetente o crítico que o afirmou. O «síndrome-souflé» é outra expressão usada noutro sítio, como se os críticos tivessem de escrever com conceitos modernos e bonitos para chamar a atenção de leitores… esperem, têm mesmo! Porque, meus senhores, mesmo que não sintam as angústias das personagens, profundamente marcadas, profundamente vividas, ao menos a criação estética está. E estar isto, pelo menos, é mais, muito mais do que muitos filmes que por aí andam conseguem. Não se chora neste filme pela história em si, ou não só. Há lágrimas de alegria e de tristeza. Eu atrevo-me a dizer que há também lágrimas de beleza. De infinita beleza. O realizador está na posse de uma visão artística inigualável, talvez aqui extremada em virtuosismo, quase a raiar a loucura. Mas não está a própria Anna a raiar a loucura quando a sociedade machista e fechada em que vive desaprova o seu amor?
 
Não sei se transmiti bem o que queria. No final do filme, atordoado, o funcionário do cinema perguntou-me se o filme era bom. Mas percebeu logo que sim, ao ver a minha expressão e os olhos húmidos. Não se enganem, é. Mas o melhor é verem e ajuizarem. A ideia disto tudo é simples: um belo sucessor de «Atonement», também ele adaptado de um romance e o meu de eleição, com uma história extraordinária, complexa, múltipla, abarcada de uma forma singular e que vale a pena ver, em tela grande!
 



 

sábado, dezembro 01, 2012

Poemas de José Saramago

 
 
Processo
 
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por caqsa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
 
**
 
Epitáfio para Luís de Camões
 
Que sabemos de ti, se versos só deixaste,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?
 
***
 
As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
 
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.
 
****
 
Fala do Velho do Restelo ao Astronauta
 
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
 
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
*****
 
Regra
 
Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.
 
 
Os Poemas Possíveis, Lisboa: Caminho, 2011 (1966)), p.23, 36, 58, 84, 122


Forja

Quero branco o poema, e ruivo ardente
O metal duro da rima fragorosa,
Quero o corpo suado, incandescente,
Na bigorna sonora e corajosa,
E que a obra saída desta forja
Seja simples e fresca como a rosa.

**

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
  manhãs e madrugadas em que não precisamos de
  morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
  em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
  palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
  mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
  vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
  sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
  mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
  ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
  como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

***

Caminhámos sobre as águas como os deuses
E fomos deuses
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
e os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos.

Provavelmente Alegria, Lisboa: Caminho, 1999 (1970), p.20, 52, 71