domingo, setembro 24, 2006

A Intertextualidade em actividades de leitura orientada na aula de língua materna

É amanhã que eu e a Su, a minha querida colega de estágio e amiga, sobretudo, vamos apresentar o nosso trabalho de seminário deste ano, na FLUP. fomos escolhidos para este dia especial para os novos estagiários. e aqui fica um cheirinho muito pequeno do nosso trabalho, mas só as epígrafes - que melhor maneira de falar de intertextualidade se não ir aos textos e deixá-los falar!!!



“A escrita que estava gravada naquelas tábuas era da mão de Deus, que ali tinha escrito os seus dez mandamentos, e tinha-os escrito duas vezes para marcar a sua importância, (…)”

Êxodo, XXXII-16


“is a fashionable term, but almost everybody who uses it understands it somewhat differently”

Heinrich F. Plett, Intertextuality


“a intertextualidade é entretecida pelo diálogo de vários textos, de várias vozes e consciências”.

Aguiar e Silva, Teoria da Literatura


“Mas nem assim deve entender-se que é possível e legítimo falar de intertextualidade, sempre que (e apenas porque) uma vaga semelhança eventualmente aproxima dois textos”

Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura


“«Mas esta frase não me soa a novidade. Aliás, toda esta passagem, parece-me que já a li». É claro: são temas que se repetem, o texto é tecido por estes vaivéns, que servem para exprimir o flutuar do tempo. És um leitor sensível a estes requintes, tu, sempre pronto a captar as intenções do autor, não te escapa nada.”

Italo Calvino, Se Numa Noite de Inverno Um Viajante

sexta-feira, setembro 08, 2006

Cecília Meireles




O vento é sempre o mesmo,
mas a sua resposta
é diferente em cada folha.

Somente a árvore seca fica imóvel
entre borboletas e pássaros.

Iniciação


Era sempre depois do banho que a sua vertente lúbrica se inflamava. No quarto, ao vestir-se, inventava uma série de histórias, e personagens malucas que o impediam de vestir-se e lhe faziam coisas indecentes. E terá sido numa dessas alturas que, ao comprimir-se contra uma almofada pequena, terá sentido o prazer e a dor de ejacular pela primeira vez, ainda sem saber muito bem o que era aquilo.
E foi aos poucos ganhando a consciência de todo um mundo dominado pela tentação do sexo. Sabia mais ou menos o que era. Um primo, estranhamente até era mais novo, já lhe tinha dito para que serviam todas as coisas de que ninguém falava à sua frente, mas sempre se considerara acima de qualquer acto de nojo como aquele, admitindo para si e para os colegas de brincadeira que seria um celibtário ou lá como se dizia. Claro que não era só nojice, mas sim a ignorância de como as coisas se faziam e quando as poderia começar a fazer. E perante uns colegas tão estranhamente precoces, que afirmavam ter-se já iniciado sozinhos na descoberta de alguns prazeres proibidos, embora ainda sem a presença de uma rapariga, sempre sozinhos, no interior dos seus quartos, António achou que seria interessante experimentar, embora sem saber muito bem como o fazer. Os filmes que passavam na televisão ajudavam a imaginar, e era pela imaginação que inventava as histórias com as personagens malucas que o impediam de vestir-se e que lhe faziam coisas indecentes. Quem o ensinou a manobrar o instrumento foi um colega de escola, no balneário, depois de uma aula de Educação Física. Perante a demonstração descomplexada, António reagiu dualmente, não conseguindo imediatamente decidir-se entre a proibição de um acto tão condenável e a atenção suspensa de tentativa de aprendizagem para poder repetir mais tarde, no sossego do seu quarto.
À noite, no quarto, imitou o colega, sem grande êxito, porque uma dor imensa não lhe permitia puxar a pele como o Nuno fazia. Um pouco desiludido e envergonhado, apagou a luz e deitou-se. Escusado será dizer que acordou com a sensação estranha de alívio molhado que caracteriza os sonhos eróticos. E nessa tarde, à vinda para casa, o Nuno quis saber se já experimentara e como fora. E aconselhou-o a imaginar coisas, a lembrar-se daquelas cenas dos filmes e das novelas, das raparigas. E nem precisava de forçar, de puxar muito. Com o tempo aquilo ía ao sítio.
Não foi nessa noite nem nas seguintes, António não queria experimentar e dizia que queria ser como os padres. Mas nesse fim-de-semana uma visualização fê-lo mudar de ideias e voltar a ter os seus pensamentos lúbricos. Ouvira, no jantar, a Mãe falar dos novos vizinhos do lado, um casal que estava a tentar engravidar e que tinha vindo passar uns dias à aldeia. E agora, ao ir fechar as janelas do seu quarto, viu, na janela da casa ao lado, um homem nu por cima de uma mulher, ambos com uma expressão de dor intensa, sem conseguirem soltar-se. Sentiu subitamente o latejar do seu membro ficando erecto, ajoelhou-se, sem desfitar a janela da casa e começou devagarinho a experiência, até quase berrar perante a sensação de prazer que o invadira.
Foi assim que começou, a pouco e pouco, a explorar os mistérios do seu corpo e a sua sexualidade. E continuou o trajecto de várias formas, sempre secretamente,
Uma tarde, na altura em que os livros que tinha já tinham sido relidos, foi à estante dos livros dos pais, onde já só restavam as enciclopédias ilustradas e os livros de culinária, pretos, com pratos tão estranhos que a Mãe nunca fizera nenhuma receita por eles, e alguns livros de capas grossas e letras doiradas. Um dos livros que achou por bem ler foi Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Jorge Amado. Com um título daqueles só poderia ter sexo. E tinha, encoberto. Copiou todas as passagens que achava excitantes para um caderninho preto que escondia atrás dos seus livros de escola, deliciado por possuir secretamente as provas da sua própria ousadia.
Mas não chegou. Sabendo que havia mais livros em casa, foi procura-los na caixa que o pai guardara debaixo da mesa do telefone, pois, como ele dizia, já eram livros velhos e a Mãe concordava, dizendo que só estavam a enfeiar a casa. Na caixa, agora aberta, estavam romances, claro. E no fundo da caixa, alguns com capas e títulos indiciadores do seu conteúdo. Fascinado, retirou apenas esses, sabendo que do risco que corria, e escondeu-os no guarda-fatos. À noite, antes de dormir, lia sempre um bocado, às escondidas, e acordava sempre transtornado com os sonhos que tais personagens e histórias. E ia copiando as passagens mais impressionantes, o que envolvia uma dificuldade enorme de selecção, pois o sexo estava página sim página sim nesses livros.
Foi também por essa altura que o pai lhe ofereceu uma televisão velha para pôr no seu quarto. Sextas-feiras à noite, aos poucos, foi vendo séries, programas, filmes que já não o elucidavam mas que o incendiavam. E começou então a sua monumental obra. Não, não escreveu um romance erótico baseado nas suas experiências platónicas de observador nem se tornou um Don Juan. Tinha já, na altura, uns catorze anos quando, num veio de inspiração, começou a fazer uma revista. No início não sabia muito o que fazer, como, mas começou por dobrar uma série de folhas A4 a meio, agrafou-as no meio e deu-lhe um nome: Sex, em inglês, sempre era mais universal (claro que essa revista era só dele, para ele, ninguém sabia da sua existência). Na capa teria de pôr uma fotografia e algumas frases, como as revistas que a Mãe comprava todas as semanas, ou a irmã mais velha, que agora tinha a mania de comprar uma certa revista que falava de todos os ídolos das raparigas na idade parvinha da adolescência. Aliás, foi a ver essas revistas teve a ideia e começou a recolher material. Todas as sextas a Mãe deitava a revista no caixote do lixo, todos os sábados, António levantava-se mais cedo e rasgava as folhas que lhe interessavam e deixava a revista como se intacta estivesse, para ninguém desconfiar. Nas revistas da irmã nunca se atreveu a tocar, até inventar um pequeno acidente com a caixa em que ela as guardava, deitando-lhe fogo, mas tendo já antes retirado tudo o que lhe interessava.
A construção das revistas foi-se tornando uma obsessão sem precedentes na sua vida. Fazia quatro por ano, com cerca de trinta páginas cada. E ao todo fez doze. A recolha feita era nas revistas, nos jornais, nos catálogos de roupa que a Mãe recebia, mas também nas revistas diferentes das da Mãe que a avó comprava, e, qual arca dos tesouros, algumas revistas para adultos que um tio guardava escondidas no guarda-fatos, mas desde que ele fora trabalhar para França, sem data para regressar, faziam as delícias de António.
Era à noite que António trabalhava nas suas revistas. À luz do candeeiro, em frente à janela onde vira o jovem casal que queria engravidar. O afinco que colocava no trabalho seria facilmente provado se pudéssemos ver qualquer um desses exemplares únicos, escritos à mão e com fotografias coladas com fita-cola nas pontas. Escolhendo uma ao acaso, a número sete, tem na capa uma foto de uma mulher sorridente com uma camisa meia transparente e um homem à sua frente, a olhar para ela, em tronco nu. Segue-se um índice e depois vários artigos: “O Beijo ao longo dos tempos” (provavelmente retirado de uma das tais revistas para donas de casa…), uma entrevista com um actor português que participou numa novela brasileira e que terá feito umas cenas quentes, outro artigo chamado “Filmes Proibidos (continuação)”, ilustrado com fotografias de O Império dos Sentidos e outros, segue-se ainda um desdobrável de roupa interior masculina e feminina encimado por uma nota: “Extra”, e depois páginas inteiras de revistas recortadas e coladas falando de “Sexo criativo”, “Sou louco por louras”. Por fim, após algumas páginas de excertos dos livros que já havia lido, ele próprio escreveu dois “Contos Eróticos”, terminando a revista com um elucidativo “Na Próxima Revista”. É interessante ler os seus contos. O primeiro chama-se “A Primeira vez” e é a história de uma mulher que passeia por um jardim e que é possuída por um desconhecido numa ponte. Mas a história evolui para uma relação matrimonial, para menáges e outras trapalhadas que acabam em bem para todos. O outro conto chama-se “A Festa de Aniversário” e conta a história de uma mulher que faz anos e que durante a festa seduz o pianista da festa, acabando por “conduzi-lo para a cozinha”, onde ele acaba por “atirar-se a ela, despindo-a e despindo-se a si próprio também” e o resto que se adivinha.
Seria inútil descrever ainda a quantidade de brindes que as revistas oferecem: livro com filmes aconselhados, cartas com fotos de artistas nus, etc.
Poder-nos-á parecer estranho tanto homem e tanta mulher. De facto, a revista não faz distinção sobre o público, que era apenas ele. Talvez lhe interessasse o sexo no seu pleno e não apenas um dos seus intervenientes…
Depois de tudo isto, resta talvez dizer que o António morreu aos vinte anos, num acidente de viação. Ao arrumarem o seu quarto, descobriram uma caixa que dizia: ao Nuno. Entregaram-ma ontem e hoje e todos os segredos de António, as revistas, o caderninho preto e o seu diário, onde estão todas as informações que aqui apresentei, acabaram por ser reveladas. Ou talvez não. Nem todas. Mas a quem interessam as verdades quando toda a gente as tenta esconder?
Maio de 2006

Tormes 2006







jantar na Casa do Lavrador
"gato psicótico" - exposição
vista sobre a casa da Lagariça - que inspirou A Ilustre Casa de Ramires
vista da janela da capela da feq (devia estar na vertical...)

Com alguma sorte consegui novamente ser bolseiro para o Curso Internacional - Seminário Queirosiano: “Eça de Quiroz: como da crónica nasce a ficção”.

Domingo – 23 de Julho

Cheguei à estação da Ermida às 7:33. na estação vazia conheci a primeira amiga tórmica deste ano: a Catarina (Leiria, Univ. de Lisboa), amiga da Sofia (do ano passado). À chegada encontrámos já algumas pessoas na quinta. Durante o jantar os primeiros contactos, que acabam por ser os mais fortes, estranhamente, arbitrariamente: Ricardo, Verónica, Tiago, Jerónimo…). Depois do momento do café, muito animado, o pessoal foi dormir. Este ano fiquei na Casa do Túnel, no andar de cima, com o Nelson (São Tomé). O quarto era enorme e tinha quarto de banho e quarto de vestir! Estávamos servidos ainda de uma sala e cozinhas enormes, com sofás e televisão, que partilhávamos com o pessoal debaixo: Edite (Cabo Verde), Leonilde (São Tomé), Jerónimo (Colômbia) e Ricardo (Porto-EUA).

Segunda – 24 de Julho

Após uma noite muito mal dormida, com o susto terrível do comboio (o 1.º a passar de madrugada), lá me preparei para a rotina matinal: 8:15 o pequeno-almoço, 9:00 no autocarro, 9:30 início do curso. O pequeno-almoço era fantástico: leite e café, sumo de laranja, croissants, pão, compotas e manteiga, queijo e fiambre, e as fantásticas cavacas de Resende. As viagens foram mais agradáveis, já não “havia o pavimento degradado”, porque o estavam a arranjar naquela semana!
Na fundação, após as primeiras vistas rápidas e fugazes, tivemos as sessões de trabalho. Começámos com o conto “Singularidades de uma rapariga loura”, com a prof.ª Isabel Margarida Duarte. Seguiu-se a prof.ª Annabela Rita, que também trabalhou connosco de tarde: a crónica e sua estrutura e definição genealógica e algumas incursões por O Primo Bazílio, que virá de algumas ideias já espalhadas por crónicas de Eça de As Farpas.
Seguiu-se uma visita à casa de Tormes: os móveis originais da casa e as coisas que vieram da casa de Paris, os livros, as fotos, as histórias em torno delas…
O jantar foi na casa do lavrador, que tenta recuperar o ambiente do século XIX através da gastronomia e do uso de objectos da época: candeias a petróleo, regadores de lata, mesas e bancadas grandes de madeira… o jantar foi broa quente, pataniscas de bacalhau, azeitonas, sopa, e - típico e queiroziano – o arroz de favas. A terminar, o leite-creme! O jantar foi animado pelas conversas, as histórias dos moçambicanos e pelo professor de música, que tocou gaita-de-foles.


Terça – 25 de Julho

Depois do banho frio, tivemos a manhã preenchida com a prof.ª Elza Miné e com a prof.ª Annabela Rita, e continuámos a ver a produção cronística e passámos por O Conde de Abranhos. De tarde ainda tivemos um curso rápido sobre os instrumentos tradicionais de Baião com o professor Vasco: bombos, caixas, tamboril, palheta, flauta, gaita-de-foles, viola braguesa, viola amarantina, rabeca chuleira, cavaquinho… Acabámos o dia em Tormes com a prof,ª Isabel Margarida Duarte a terminar o outro conto e trabalhámos o conto “O Tesouro” – e eu oficialmente passei a ser o leitor em voz alta…
Chegámos cedo à quinta, com bom tempo, e aproveitámos para dar um passeio e dar uns mergulhos na piscina. À noite, após o jantar na quinta, fui ver as Donas de Casa Desesperadas e acabei por ficar até às 3:15 no paleio com a Edite e o Nelson!

Quarta – 26 de Julho

De manhã tivemos a prof.ª Elza Mine (“Uma partida feita ao Times”) e a prof.ª Isabel M. D.: “No Moinho”. A tarde foi reservada para o passeio por Resende: visitámos o Museu Municipal de Resende – a exposição arqueológica e etnográfica da região (fantástica) e a exposição sobre Edgar Cardoso (“o engenheiro, o professor, o génio”... e o “Escritor”;) ).
Seguiu-se St.ª Maria de Cárquede onde se voltaram a contar as histórias de D. Afonso Henriques e as velas, a Nossa Senhora grávida mas e já com Jesus nos braços (branca – mas negra) e o sardão. Depois, a caminhada para a casa da Lagariça, um local fantástico, com um jardim excelente e enorme, com algum abandono e que terá inspirado o espaço de A Ilustre Casa de Ramires. Adorei profundamente.
O jantar foi em Arêgos e muito simpático (no mesmo sítio do ano passado). Vimos ainda uma exposição de pintura e escultura de artistas de Famanlicão, de onde se destacavam os delirantes “Gato psicótico” e “Gato estrábico”. Chegámos todos moídos a asa, mas ainda estive no paleio com a Joana (Lisboa), Ricardo e Elizabete (Lisboa)…
Neste dia a Visão esteve todo o passeio connosco!!!

Quinta – 27 de Julho

A prof.ª Elza Miné continuou com as crónicas e Fradique Mendes, e a prof.ª Isabel M. D. enveredou por “A Perfeição” e “José Matias”. Ao fim da tarde tivemos o passeio pela zona de Baião: Ribadouro, Pala, Gôve e parámos na abertura da feira gastronómica do anho assado, onde provámos alguns doces da Teixeira e de Resende. Em Ancede visitámos a capela da Nossa Senhora do Bom Despacho – observámos com atenção o trabalho de restauro dos altares de madeira do barroco popular que representavam a vida de Jesus (infelizmente não pudemos tirar fotos). Jantámos no Casarão, em St.ª Marinha do Zêzere (o mesmo do ano passado) e foi espectacular. O pessoal divirtiu-se com a música tradicional tipo rancho e dançaram de tudo um pouco… Brilhou a Aldinida (Brasil) e os passos do forró!
Já em casa, o pessoal reuniu-se quase todo na nossa sala e jogámos ao jogo de bater as mãos na mesa, cantámos em sânscrito, crioulo de cabo verde e de são Tomé. Foi a noite mais divertida, que só terminou com a aventura nocturna: eu, o Ricardo e a Elizabete fomos levar a Lala (Madagáscar-Bélgica), a Márcia (Porto-Famalicão) e a Eva (Porto-Famalicão) à casa dos moinhos – e afinal sempre havia um moinho! Foi giro porque estava super escuro e só tínhamos um candeeiro pequeno de jardim que pouco iluminava!
Nota: o gato amarelo e branco apareceu nessa manhã à beira da minha cama!

Sexta – 28 de Julho

A professora Elza Mine acabou o curso com a crónica interminável “Os Ingleses no Egipto”. A segunda sessão acabou por ser ao ar livre e terminou com o pessoal a cantar a canção do Nelson. Após o almoço, voltámos a cantar para a Sr.ª Dona Maria da Graça e fomos gravando tudo.
As despedidas foram rápidas – todos foram para o Porto, a Lala ainda ficou na quinta, eu vim para a Régua. E pronto, com saudades nostálgicas (passo a redundância), foi mais um curso, bastante melhor que o anterior, mas igualmente enriquecedor nas amizades e no lado humano.

Notas: as camisolas do Marcos (Galiza): “Eu nunca serei yo”, “Galiza e Portugal – a mesma língua”…

músicas

A música portuguesa vive de coisas que às vezes me fazem arrepiar. A última que o conseguiu foi “Flutuo” de Susana Félix. A simplicidade aparente, uma letra mínima, repetida e elíptica, potenciadora de sentidos mais vastos parece-me um caso bastante interessante e original. A nível musical pode não haver uma regularidade (segundo o UM), mas talvez seja isso que dá também encanto à música: suave, discreta, acompanhamento de palavras, numa inseparabilidade ou comunhão entre fundo/forma. A descontinuidade, mesmo existindo, é anulada pela sensação de evasão que nos alcança, ou de desprendimento, de deixarmo-nos ir: “o meu destino está fora de mim e eu aceito”, mas também aceitação, comunhão, como se realmente estivéssemos a flutuar num rio, mas também um certo desinteresse ou desistência, e o deixar as coisas correr (ou flutuar), até ao “amanhã”. Depois repare-se no refrão, que pela sua brevidade ou concisão acaba por nos permitir pensar em vários sentidos, já para não falar no desfecho, que parece ser uma repetição e surpreende-nos com uma subtil mudança de verbos e pronomes pessoais que transformam todo o sentido. Além disso, é de destacar a beleza do verso “fazer de mim pretérito mais-que-perfeito”, de um carácter inesperado. Mesmo as rimas e sonoridades estão originais e bastante interessantes. E depois tem um piano e violinos, tipo…

Mas há outras músicas que me fazem arrepiar, noutro sentido. Não falo da música pimba ou popular, mas da outra, daquela que surge nos tops e dá nas rádios nacionais. A última sensação, bem, já há algum tempo, é “Sei-te de Cor”, de Paulo Gonzo. Talvez o senhor tenha andado a ler “sei os teus seios/sei-os de cor” de Alexandre O’Neill, mas se calhar isso é demasiada pretensão minha. Enfim, os meus ouvidos foram (já não são, porque mal começa a música eu mudo de estação, nas raras vezes em que ouço rádio) bombardeados com uma voz terrível, sem beleza ou qualidade nenhuma. Mas nem é isso que mais me incomoda, porque ele já era assim nas outras músicas mas só esta me leva à náusea! É que a música começa e termina muito suavemente, mas só com a voz dele em destaque, é só ele que faz a melodia (ou melhor, tenta…). O resto é uma guitarrada com piano (???) e bateria, que abafam um pouco a pseudo-voz. Enfim, música foleira e banal, mas má, servida com um certo pretensiosismo a grande coisa (só se for grande pónei)… Reparemos na letra, que é o que nos diz mais, a nós amantes da literatura. As rimas, quando existem, não são más nem boas, escapam – mas isso é um pormenor. A repetição também existe – mas aqui é integral, quase toda a letra é repetida! Depois, vemos que a construção do texto é sobre a omnisciência que a voz possui do objecto do discurso: “Sei de cor”, “”sei cada capricho teu”, “sei ao pormenor o teu melhor e o pior” são exemplos dessa sabedoria, que chega a irritar: “sei de ti mais do que queria”, como é possível amar alguém que se conhece assim tão bem? Enfim, o pior é que o conhecimento, além de ser sobre o físico e sobre o psicológico, é também adivinhatório: “sei cada capricho teu e o que não dizes ou preferes calar”. A acrescentar “sei por que becos te escondes” – o que nos diz isto da mulher???? E a cereja no topo do bolo, de uma congruência e lógica matemática fascinantes: “Numa palavra diria: sei-te de cor” ??? Quantas palavras estão ali? Eu conto quatro: um verbo (sei), um pronome (-te) – pronto, esta pode contar como uma – uma preposição (de) e um nome (cor). meu Deus, eu sei que sou de letras, mas estas contas eu ainda sei fazer!!! Obviamente o senhor que escreveu tamanha barbaridade e que a canta também deve saber, mas o artifício de escrita foi mais forte e ele não lhe resistiu, já que não encontrava coisa melhor para ali pôr… O pior é que a coisa até pegou e já rendeu uns eurositos ao fulano.

No meio disto tudo, porque uma demasiado sintética e outra completamente descabida, quem se vai aguentando bem é a Floribella!!!