quinta-feira, junho 30, 2011

Desafio: 06

Mais um mês de existência cheia (não direi plena, que são coisas diferentes, apesar da origem comum das palavras). Um pouquinho mais de tempo para mim e para as coisas do espírito que tanto aprecio e de aqui ficam em lista.
Nos livros, muita poesia por entre as horas ocupadas da primeira parte do mês, os livros de Manuel da Fonseca, que nem tiveram de esperar muito, e o mesmo para Jacinto Lucas Pires (muito interessante); e ainda livros infantis, lidos enquanto vigiava um aluno a fazer uma prova de acesso ao quinto ano do colégio. Coisas boas, no geral. Destaque para o divertido romance de Juva Batella, O Verso da Língua, sobre o acordo/desacordo ortográfico.
Nos filmes foram grandes as surpresas! A animação continua em grande (94, 97, 109), comédias delirantes (110, 117) com Simon Pegg (96, 101) ou com um pouco de terror absurdo (98), romance (99, 104, 113, 116) e drama (103, 107, 111) e uma extraordinária curta-metragem (114). 118, «apenas», porque entretanto me perdi com o Spartacus :)

Livros:

52. Um calculador de improbabilidades, Ana Hatherly, Quimera, 408p.****
53. Dois Corpos Tombando na Água, Alice Vieira, Frente e Verso/Visão, 80p.***
54. Antologia Poética, Natércia Freire, Assírio & Alvim, 168p.***(*)
55. Figurantes e outras peças, Jacinto Lucas Pires, Cotovia, 268p.****
56. Escrever, falar, Jacinto Lucas Pires, Cotovia, 176p.***(*)
57. Poemas anónimos. Turcos, mongóis, chineses e incertos, Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, 80p.**
58. Livro de Receitas, Luís Adriano Carlos, Campo das Letras, 70p.***(*)
59. O Verso da Língua, Juva Batella, Presença, 216p.****
60. O Fogo e as Cinzas, Manuel da Fonseca, Europa-América, 172p.***
61. Seara de Vento, Manuel da Fonseca, Planeta, 190p.****
62. A Noite Abre meus Olhos, José Tolentino Mendonça, Assírio & Alvim, 256p.****
63. Conto de Amor e Psique, Apuleio, BI, 128p.****
64. A Viagem das Três Gotinhas de Água, Lúcia Vaz Pedro (ilustrações de Raquel Pinheiro - lindas!), Gailivro, 36p.***
65. Histórias Pequenas de Bichos Pequenos, Álvaro Magalhães, Asa, 34p.*****
66. O Príncipe que Guardava Ovelhas, Luísa Dacosta, Asa, 28p.****
67. Caneta Feliz, João Pedro Mésseder, Trampolim, 38p.****

Filmes:

93. Cidade dos Homens, Fernando Meirelles e Regina Cassé****
94. Mary and Max, Adam Elliot*****
95. Amália, Carlos Coelho da Silva***
96. Paul, Greg Mottola*****
97. Rio, Carlos Saldanha****
98. Tucker and Dale vs Evil, Eli Craig***(*)
99. Penelope, Mark Palansky*****
100. While she was out, Susan Montford**
101. How to lose friends and alienate people, Robert B. Weide*****
102. Devil, John Erick Dawdle***(*)
103. Des hommes et des dieux, Xavier Beauvois*****
104. Waiting for Forever, James Keach*****
105. Season of the Witch, Sominic Sena****
106. The Eagle, Kevin Macdonald****
107. Genova, Michael Winterbottom****(*)
108. The Sex and the City 2, Michael Patrick King***
109. Idiots and Angels, Bill Plyton****(*)
110. Scott Pilgrim vs the World, Edgar Wright*****
111. Gran Torino, Clint Eastwood*****
112. Law Abiding Citizen, F. Gary Gray***(*)
113. Nick and Norah's Infinite Playlist, Peter Sollett*****
114. I'm Here, Spike Jonze*****
115. Priest, Scott Charles Stewart***
116. Water for Elephants, Francis Lawrence*****
117. Zavet, Emir Kusturica*****
118. Cztery noce z Anna, Jerzy Skolimowski***


Outras sugestões:

Sangue Bom, pela companhia PEQUOD, uma interessante história de amor entre um vampiro e uma mortal que poderia ser perfeitamente banal caso não fosse contada da forma como é: sem palavras, só gestos e alguns gemidos, músicas, cenários que são caixotes que se abrem, com bonecos e não com atores, embora eles também lá estejam e nós os vejamos a manobá-los: uma boneca com tendências suicidas, um vampiro apaixonado e o gostoso do caçador de vampiros. Muito giro! Visto no Theatro Circo.

Spartacus: blood and sand - 13 episódios de muita violência, sangue, sexo, intrigas, reconstituição da sociedade romana centrada nos gladiadores e seus organizadores. Muito bom, em crescente interesse e excitação ao longo da temporada, que encerra apoteoticamente. Melhores: Andy Whitfield, Jay Courtney, Lucy Lawless, Viva Blanca, Katrina Law,...

Spartacus: gods of the arena - seis episódios que recuperam o antes da chegada de Spatacus ao «ludus»; é interessante para perceber melhor algumas aitudes e a evolução de algumas personagens (sobretudo Lucretia), mas menos interessante, parece-me, porque o grau de surpresa foi bastante menor, condicionado que estava pelos acontecimentos da série «blood and sand». Melhores: Peter Mensah, Jaime Murray, Lesley-Ann Brandt.  

sexta-feira, junho 24, 2011

1 poema de Ana Hatherly + fragmento de um outro

O tempo como factor de correcção semântica

século VII (a. C.)


Aos meus ilustres antepassados e perante os espíritos
perspicazes apresento minhas oferendas de joelhos


século III (a. C.)


Ó meus nobres antepassados espíritos tenazes aceitai
minhas oferendas de joelhos


século I (a. C.)


Ó meus nobres antepassados ofereço-vos pertinazes
minhas oferendas de joelhos


século III (d. C.)


Os antepassados dos espíritos aceitariam perspicazes
as oferendas de joelhos


século VII (d. C.)


No passado acreditámos perspicazes nos espíritos e
nas oferendas de joelhos



*****


 O sol         desce       japonês

                       p e n s o

    pensar é hipótese



como outros corpos

                              desejo-te



Ana Hatherly, um calculador de improbabilidades, Lisboa: Quimera, 2001, p. 63, 258
outros poemas por , e aqui.

Susana Félix, Procura-se

«olha p'ra mim, bem-vindo a tudo o que é meu, que o melhor dos nossos mundos é tão pouco afinal»

«Bem-vindo»

Novo álbum. Ouvido, estranhado, entranhado. Gosto.

Sítio aqui. Com as participações de Steve Jansen (ex-Japan), João Cabrita, Jorge Drexler (vencedor de um Óscar para melhor canção original) que faz um dueto com Susana em "A Idade do Céu” e Carlos Tê. O album inclui ainda duas versões, uma de Marcelo Camelo (Los Hermanos) e outra dos Xutos e Pontapés (a música menos forte, mas muito melhor que o original).

Gosto particularmente do «Bem-vindo», mas há outros versos na sua voz fantástica em canções como:
«Já foi», «Cartas na Mesa», «Meia Palavra», «Idade do Céu», «Quem diria»

2 poemas de Luís Adriano Carlos

Um verso vem

Um verso vem. Calculo o peso da neblina
que envolve o seu teor, o preso ritmo
da esfera em movimento: cerro o olhar na alma tensa
que ao longo do percurso mais ensina. O verso
vem por si em si da imagem que vier
no imaginar do corpo em sua ascese leve, peso
de uma estrutura fina ao seu redor.

Um verso vem. O olhar na alma mais se inclina.


****
À Espera da Musa

Espero pela musa como quem confia
na transfiguração do mundo e na transmigração das almas.
Espero pela musa como quem não usa
usar o pensamento no lugar do génio
que todo o verso puro traz da luz eterna. Espero
pela musa, louco, pela musa espero, fonte
da minha criação sem termo. Um verso, musa,
um verso mais espero. E, se não vem,
sempre virá depois de apenas não ter vindo.

Musa espero, como quem confia.

Luís Adriano Carlos, Livro de Receitas, Porto: Campo das Letras, 2000, p.9, 12

sexta-feira, junho 17, 2011

Os resistentes - o 12.ºD



ou: de como são importantes as aulas de Português

ou ainda: como se faz um texto com fragmentos de alguns textos lidos mais umas sentimentalidades



Todos somos chamados, pelo menos uma vez, a desempenhar um papel que nos supera. É nesse momento que justificamos o resto da vida, perdida no desempenho de pequenos papéis indignos do que somos (FL,89). Por isso escrevo em meio (12,32) de palavras de outros e minhas, agora que é a hora (12,159)!

         Tanto de meu estado me acho incerto (10,191), turma primeira de três anos, em que os resistentes a tudo tão bem e tanto cresceram, que meu coração e os lábios disseram em uníssono (10, 48): a memória é um espelho velho, com falhas no estanho e sombras paradas (10, 159), mas sei que o desgaste será lento e esse comboio de corda que se chama coração (12,30) não me fará esquecer-vos.

Para vos dizer, seriam precisas sagradas palavras e essas não cabem em nossas humanas vozes (10,303): Vos estis sal terrae (11,88). A loucura de alguns, a paixão de outros, a indiferença de alguns tolinhos pela arte das palavras, pelas alusões frequentes a esse desgraçado rei D. Sebastião (11, 133), e outras atitudes e caraterísticas que não vale ou não merece agora a pena referir, ensinaram-me a olhar a cada momento para a eterna novidade do mundo (12,58). Se eu não morresse, nunca! E eternamente buscasse e conseguisse a perfeição das coisas! (11,273) talvez tudo pudesse ter sido melhor, mais intenso…

Se pouco eu vos ensinei, espero que pelo menos vos fique/surja o carinho pelos livros, pela poesia, porque os livros trazem tantas vidas e tantos conselhos como a vida em si, se vivermos e lermos, quantas vidas teremos vivido? O mito é o nada que é tudo (12,129) dizia o nosso poeta, e mesmo no crepúsculo dos dias de hoje felizmente há luar! (FL,140), por isso, e se Ser descontente é ser homem (12,157), continuemos na busca do Caminho da virtude, alto e fragoso (12,145), para que façam saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal (11,144) – ou catorze! Não iremos dar-nos por satisfeitos (11,103) com o que já alcançámos. Não se esqueçam, e sejamos um poucos deuses [sei que sei, não sei como sei (MC,73)], do Deus quer, o homem sonha, a obra nasce (12,139) – o «Todo Pessoa» lá nasceu!

Depois pensemos, crianças adultas, que (12,74) tudo vale a pena (12,150), mesmo Cada hora a mais que gasta no caminho (10,253) que incomoda como andar à chuva (12,53): saibamos aproveitar não só os fins, mas também os meios; saibamos dizer Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi (10,174); que cada um saiba ser rei de si próprio (12,73).

         Uma superfície branca é como um dia que quer romper (10,135), por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco (10,250), novos alunos me virão, novos professores vos encontrarão, pois muito há a fazer, sempre. Chegou a hora (11,102) e digo-vos mais uma vez: olharem-se era a casa de ambos (MC,149), que também serei uma casa quando me precisarem, como sempre.



Receita: Para ser grande, sê inteiro: nada / teu exagera ou exclui. / Sê todo em cada coisa. / Põe quanto és no mínimo que fazes (12,81).


sábado, junho 11, 2011

2 poemas de Natércia Freire

Cidade de Água

O sol e o mar recolhem-se na infância
De áridas terras e de casas frias.
São um ser que já foi, nessa distância,
De estar no Tempo em praias de outros dias.


Por dentro, é a penumbra do casulo,
Cerrado à luz na expectativa informe.
Se vou nascer - a vida não regulo;
Se vou morrer - a morte ainda não dorme.


Tinha histórias de espectros para contar,
Labirintos de seda para correr.
Tudo o que foi o inverno do luar,
Numa cidade de água a amanhecer...



*****

Guerra


São meus filhos. Gerei-os no meu ventre.
Via-os chegar, às tardes, comovidos,
nupciais e trementes
do enlace da Vida com os sentidos.


Estiveram no meu colo, sonolentos.
Contei-lhes muitas lendas e poemas.
Às vezes, perguntavam por algemas.
Respondia-lhes: mar, astros e ventos.


Alguns, os mais ousados, os mais loucos,
desejavam a luta, o caos, a guerra.
Outros sonhavam e acordavam roucos 
de gritar contra os muros que há na Terra.


São meus filhos, gerei-os no meu ventre.
Nove meses de esperança, lua a lua.


Grandes barcos os levam lentamente..




Natércia Freire, Antologia Poética, Lisboa: Assírio & Alvim, 2001

2 poemas de Alice Vieira

é claro que sei dizer palavras calmas
e amar devagar os que chegam a meu lado
e recordam o meu nome de todas as maneiras
com que ao redor da vida o foram construindo

é claro que sei inventar cantigas breves
das que à meia-noite perdem as notas mais vibrantes
quando fogem precipitadamente dos nossos bolsos

 
é claro que sei voltar a casa e abrir a porta
e fingir que tudo está perfeito sobre a mesa
e os objectos guardam os lugares de sempre
e eu continuo na moldura com um riso de quinze anos
tropeçando no teu ar sério quase a sair do retrato

é claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo
nas noites em que chegas e dizes já não chove
como se colocasses no meu colo uma prenda de natal
e pudesses apagar a tempestade
no brevíssimo instante em que a vida se resume
aos nossos olhos tentando
acreditar que é cedo

é claro que sei esperar por ti
sabendo desde sempre que não vens e mesmo assim
escolho sem sobressalto a música perfeita
de te acolher no sono com o enevoado rumor
de todos os encontros improváveis

é claro que sei as palavras mesmo que as não diga
que misturas ao longe com os afiados gumes
com que tentas a custo perdoar-te
as horas roubadas a todos os seus legítimos donos

é claro que sei fechar as janelas às armadilhas
que as noites constroem dentro dos teus medos
e donde não consegues regressar
e com sorte encontrar numa cómoda
qualquer coisa tua que esqueceste
na pressa da saída e pensar
que foi por mim que ela apareceu
em tão estranho lugar

- mas quando entre os ruídos da noite
a tua ausência é a única divisão da casa
que razoavelmente partilhamos
tudo isso serve desculpa de muito pouco


******


eu gostava de poder dizer
que entrei no teu corpo como um pássaro
espreitando através de invisíveis ruínas
e que o som da tua voz bastava
para me salvar

mas de anda serve inventar palavras
quando as palavras que inventamos
não passam de frágeis lugares de exílio
dos gestos inventados fora de horas
delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
de que jurámos ressuscitar um dia

- quando os deuses se lembrassem
de acordar ao nosso lado



Alice Vieira, Dois Corpos Tombando na Água, Lisboa: Caminho, 2007