segunda-feira, dezembro 26, 2011

Desafio: 12

E assim se chega ao fim de mais um ano e de um desafio, e logo se começará um ano novo e um novo desafio. Em setembro deste ano repensei-o o desafio do ano, já que os valores de 100 livros e de 200 filmes tinham sido já alcançados nesse nono mês, e ultrapassados. Assim, foi investir para que se acrescentasse, a cada um deles, a sua própria metade. 150 livros - dos quais, este mês, se destacam 0 139, o 146, o 147 e 0 150. 300 filmes, além das séries (que não contabilizo), com boas surpresas e alguns de exceção, como 271, 293, 297, entre outros. Referência ainda para mais uma peça de teatro, Último Ato, no Theatro Circo, que, simplesmente, abominei - a últimas das 16 peças a que assisti este ano (a que se juntam 7 concertos ou espetáculos de dança).

Bons números, que se espera que se mantenham em 2012. Quanto aos livros, não tenho fé em 150, até porque o desafio que me lanço é ler os 53 de 104 livros da coleção Mil Folhas/Público, a coleção que comecei a fazer e a ler aos poucos ainda em 2002 - 10 anos depois é hora de os devorar. Além disso, e entremados com outros livros que se insinuem mais, a obra completa em seis volumes de Jorge Luís Borges - vai ser este ano, finalmente. Mas também gostava de ler livros pendentes de Luísa Dacosta, Miguel Torga, Vergílio Ferreira, Guy de Maupassant, Italo Calvino, Aquilino Ribeiro, muita poesia... enfim, letras a mais! Filmes, tudo o que vier é bom, embora tenha ainda algumas séries à espera...

Aqui ficam as propostas deste mês:



Livros:

137. Encenar é Viver, Margarida Lobato Costa, Chiado Editora, 70p.*
138. Nunca é Velha a Esperança…, António Cardoso, Ulmeiro, 136p.**(*)
139. As Obras-Primas de T. S. Spivet, Reif Larsen, Presença, 386p.*****
140. O Soar dos Quissanges, Eugénia Neto, Presença, 112p.***
141. Poemas ao Vento, António Alberto Neto, Kiazele, 110p.*
142. Não posso adiar a palavra, Hélder Proença, Sá da Costa, 92p.***(*)
143. A Estrela dos Amantes, Philippe Sollers, Teorema, 152p.***
144. O Silêncio da Água, José Saramago, Caminho, 24p.****
145. Alice do Outro Lado do Espelho, Lewis Carroll, BI, 160p.****
146. A Estrela de Gonçalo Enes, Rosa Lobato de Faria, Quasi, 224p.*****
147. O Rapaz do Pijama às Riscas, John Boyne, LeYa, 192p.*****
148. O Príncipe do Mar, Adolfo Simões Muller, LeYa, 160p.****
149. O Papalagui, Tuiavii de Tiavéa, Antígona, 144p.****
150. A minha palavra favorita, Jorge Reis-Sá, Centro Atlântico, 400p.****(*)


Filmes:

271. Les Petits Mouchoirs, Guilhaume Canet*****

272. Copie Conforme, Abbas Kiarostami****
273. Eat Pray Love, Ryan Murphy****
274. When in Rome, Mark Steven Johnson***(*)
275. Lost Colony - The Legend of Roanoke, Matt Godd**(*)
276. Potiche, François Ozon****(*)
277. Sharktopus, Declan O'Brien*
278. Highlander: The Source, Brett Leonard***
279. Tomorrow, When the War Began, Stuart Beattie****
280. The American, Anton Corbijn***(*)
281. Green Lantern, Martin Campbell****
282. Trespass, Joel Schumacher***(*)
283. The Sourcer's Apprentice, Jon Turtelbaut***(*)
284. Burlesque, Steve Antin****
285. The Holiday, Nancy Meyers****
286. Captain America: The First Avenger, Joe Johnston***
287. The Last Song, Julie Anne Robinson***(*)
288. The Green Hornet, Michel Gondry****(*)
289. Sucker Punch, Zack Snyder****
290. Inversão, Edu Felistoque**
291. The Losers, Sylvain White***
292. Loong Boome Raleuk Chat, Apichatpong Weerasethalcul***(*)
293. The Help, Tate Taylor*****
294. Dream House, Jil Sheridan***(*)
295. A Christmas Carol, Robert Semeckis***(*)
296. Enter The Void, Gaspar Noé**(*)
297. Patagonia, Marc Evans*****
298. Ask Tesadyfleri Sever, Omer Faruk Sorak*****
299. The Ides of March, George Clooney*****
300. Another Year, Mike Leigh****(*)

sexta-feira, dezembro 23, 2011

Poemas Africanos dos livros lidos este mês



Flache Poético II

Beijo sinceramente a noite
sinto o chilrear sinfónico dos pássaros
na ânsia fértil de possuir
a manhã prata-inicial

Oiço risos abertos
linearmente tecidos de luzes infantis
sobre o ébano movimento das ondas

Entendo a paixão ardente do luar
abraço as buganvílias pálidas
sem cheiro
mortas sobre teus braços traiçoeiros querida!


Hélder Proença, Não posso adiar a palavra, Lisboa, Sá da Costa, 1982:53



Que Lata...

Os fornos crematórios agiram sobre Judeus
A política da terra queimada ceifou Argelinos
Angolanos
Vietnamitas
Chineses
Moçambicanos
Guineenses
Latino-americanos
A política de violência da ganância ceifou a vida
de outros povos
Essa é a história real da Humanidade
Porque não pedem perdão?
Porque ainda continuam dizendo que esses povos oprimidos
ainda não têm história!

António Alberto Neto, Poemas ao Vento, Luanda, Kiazele, 2009:61


Senhor do Universo

Ficas aí mudo
surdo
como se nada
estivesse a acontecer

Os gritos de dor
o choro dos homens
o estrondo dos canhões
as labaredas
e a terra ensopada de sangue
não te dizem nada!?

Ah! Senhor
nesse Olimpo
de estrelas
deixaste-te ultrapassar
pelo tempo
numa velhice senil
de abandono.

Eugénia Neto, O Soar dos Quissanges, Lisboa; Editorial Presença, 2003:44


Onde moras, que tardas?!

Se te penso defendo-me do frio
Das noites. E não ouso repetir
Teu nome, pois logo me nasce rio
Vulcânico nas veias, e este sentir-

-me doído e apunhalado se desfaz
Qual mansa onda na praia imaginada.
Tudo em ti está no vento que me traz
Força para viver ou desesperada

Impotência de já morto me ver...
Bem sei és só sonho... e demais demoras
A vir. (Virás?) Mas, se por te saber

Fumo no cérebro, já me devoras,
Oh, louco sonho!, poderei morrer
Se por acaso souber onde moras!...

António Cardoso, Nunca é Velha A Esperança..., Lisboa: Ulmeiro, 1980:48

segunda-feira, dezembro 19, 2011

Poema de Natal 2011


Puer Natus Est Nobis


Dos contos de fadas da
minha infância, este da Divina
Criança era dos mais extraordinários. Não
faltaram os exóticos magos guiados
pela mística estrela, a noite gelada, os
mansos animais, o desvalido ermo, a pobreza
transformada em glória. O bem
sucedido parto de uma virgem, tantos séculos
antes das pesquisas genéticas. O pior
foi quando quiseram contar o Tempo
a partir desta história. Podiam ter escolhido
outra, com um fim menos cruel. Antes
a da Cinderela ou a do Princípe Sapo, onde
todos viveram delizes para sempre. Sempre?
E o que é?


Sempre?

Inês Lourenço, in: Natal... Natais. Oito Séculos de Poesia sobre o Natal. Antologia de Vasco Graça Moura, Público, 2005:339.

terça-feira, dezembro 13, 2011

Natal 2011



Mariah Carey, «God Rest Ye Merry, Gentlemen»

Pois bem, como no Natal o que mais recebo são livros mesmo, cá fica a listinha daqueles livros que eu gostava de ter, mas, pelos mais diversos motivos, ainda não me vieram ter à mão. Sim, a lista já foi maior, e tem decrescido a olhos vistos, já que tenho comprado resmas deles. Mesmo sendo difíceis de encontrar (alguns deles só mesmo em alfarrabistas), aí ficam eles:

A casa do pó, Fernando Campos
A criança em ruínas, J. L. Peixoto
A desordem do teu nome, Juan José Millás
A Filosofia Africana na Linha do Tempo, Muanamosi Matumona
A Lenda dos Homens do Vento II, Fernando Fonseca Santos
A Mão de Fátima, Eduardo Falcones
A Pátria dos Loucos, Bernardo Rodo
A Perspectiva da Morte, Assírio & Alvim
A Terceira Metade, Ruy Duarte de Carvalho
As Paisagens Propícias, Ruy Duarte de Carvalho
Coração, cabeça e estômago, Camilo Castelo Branco
Livro do Amigo e do Amado, Ramon Llull
Livros Textos Leituras, Alberto Carvalho
O amor de Pedro por João, Tabajara Ruas
O Cemitério de Praga, Umberto Eco
O livro do riso e do esquecimento, Milan Kundera
O mercador de Veneza, Shakespeare (cotovia)
O sorriso etrusco, José Luis Sampedro
Ofício Cantante, Herberto Helder, Assírio & Alvim
Os Rios Inumeráveis, Álvaro Cardoso Gomes
Peregrinação de Enmanuel Jhesus, P. Rosa Mendes
Poemas, A. Franco Alexandre, Assírio & Alvim
Poesia Reunida, Manuel António Pina, Assírio & Alvim
Relato de um Certo Oriente, Milton Hatoum
Substâncias Perigosas, Pedro Eiras
Teatro, Bernardo Carvalho
Um homem popular, Chinua Achebe
Uma vida de Boy, Ferdinand Oyono
Zona, Mathias Énard

A Guerra dos Tronos, volumes 8, 9 e 10.

Quase impossíveis:
Gulbenkian:
História e Antologia da Literatura Portuguesa (5 vols)
Gramática do Português Antigo
Estética Teatral
Literaturas Africanas

Mil Folhas (ou noutra edição qualquer):
74. O Cônsul Honorário, Graham Greene
77. Big Sur, Jack Kerouac
79. O cheiro da noite, Andrea Camilleri

Unibolso:
24, 56, 57, 69, 72, 89, 94, 111, 113.

RTP:
2, 10, 11, 16, 23, 27, 38, 40, 44, 46, 51, 54, 55, 63, 65, 66, 70, 74, 75, 79, 81, 88, 90, 91, 92, 95, 99.

Grandes Génios da Literatura:
O moinho à beira do rio, George Elio
Moby Dick, Herman Melville


Coleção Grande Sol: O Rapaz do Bairro de Carvão

Coleção Vozes de África: n.º 4, 5, 12, 16, 18, 20, 21.

«Ficções»: n.º 1, 2, Férias, 5, Comer, Humor, Filmes, 12, 14, 16

quarta-feira, novembro 30, 2011

um poema de Flora Osório




Minha colega de trabalho e amiga das aventuras africanas e literárias, vai comigo ao teatro às vezes ;)


Inquietação

Às vezes quero estar bem
por entre imagens e metáforas.
Longe da realidade,
refugio-me a pensar.
Mas quando começo a escrever,
tudo me inquieta
na caligrafia do poema!


Flora Osório, Dos Sons de África aos Sons do Meu Sentir, AEAS, p.43

A Pátria dentro da Pátria



Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.


Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.


Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno.


Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.


Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.


Porque ali é o lugar onde para mim começaram todos os maravilhamentos e todas as angústias.


Cidade onde sonhei cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.


Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.


Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.


Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.


Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. (…)


Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Eugénio de Andrade,
Daqui Houve Nome Portugal, Antologia de verso e prosa sobre o Porto

Deafio: 11

Em bom ritmo, com boas companhias, o desafio vai-se cumprindo e as sugestões multiplicando. Da descoberta real de (Ana) Paula Tavares e de Joseph Conrad, passando pela belíssima edição de Daqui Houve Nome Portugal, até chegar aos belíssimos livros entre a ficção, o policial e a realidade dos escritores em produções de Manguel e Verissimo, houve tempo para boas leituras (algumas opiniões começam a ser apresentadas aqui). E bons filmes também, de que destaco alguns que me parecem mesmo muito bons, como: Barney's Version, Begginners (com uns irrepreensíveis Ewan McGregor e Christopher Plummer e um cão de que, finalmente, gostei), e ainda La Piel que Habito e Another Earth, que têm um ou outro pormenor de que não gostei tanto, mas muito bons também. Destaque ainda para a curta-metragem Dragons: Gift of the Night Fury, uma espécie de história com sabor natalício a partir do meu filme de animação favorito, How to train your dragon.
O desafio segue a todo o vapor, já dó faltam 14 livros e 30 filmes ;)


Livros:

123. A Cabeça de Salomé, Ana Paula Tavares, Caminho, 144p.****
124. O Lago da Lua, Paula Tavares, Caminho, 56p.***(*)
125. Dizes-me coisas amargas como os frutos, Paula Tavares, Caminho, 48p.***
126. Histórias Inquietas, Joseph Conrad, BI, 192p.***
127. O Coração das Trevas, Joseph Conrad, Visão, 96p.****
128. Juventude, Joseph Conrad, Quasi, 96p.***(*)
129. Linha de Sombra, Joseph Conrad, Público/Mil Folhas, 160p.****(*)
130. Daqui Houve Nome Portugal, org. Eugénio de Andrade, O Oiro do Dia, 294p.*****
131. O Túnel, Ernesto Sábato, Relógio D’Água, 144p.***
132. Dos Sons de África aos Sons do meu Sentir, Flora Osório, AEAS, 88p.***(*)
133. O Romance das Ilhas Encantadas, Jaime Cortesão, Vega, 52p.****
134. Borges e os orangotangos eternos, Luís Fernando Verissimo, Asa, 144p.*****
135. Stevenson sob as palmeiras, Alberto Manguel, Asa, 80p.****
136. A revolução eletrónica, William Burroughs, Vega, 96p.***


Filmes:

241. My Blueberry Nights, Kar Wai Wong****
242. Barney's Version, Richard Lewis*****
243. Humpday, Lynn Shelton***
244. Homme au Bain, Chistophe Honoré**
245. Paranormal Activity, Oren Peli**(*)
246. A Corte do Norte, João Botelho****(*)
247. 2012, Roland Emmerich***(*)
248. Don't be Afraid of the Dark, Troy Nixey***(*)
249. Inkheart, Iain Softley****(*)
250. L'Illusioniste, Sylvain Chomet****
251. Jacboots on Whitehall, Edward McHenry e Rory McHenry****
252. Beginners, Mike Millis*****
253. The Switch, Josh Gordon e Will Speck****
254. War of the Worlds, Steven Spielberg***
255. Kick-Ass, Matthew Vaughn****
256. Mistérios de Lisboa, Raoul Ruíz****
257. Rare Exports, Jamari Helander***(*)
258. The Change Up, David Dobkin***
259. I Sell the Dead, Glenn McQuaid*****
260. Chasseurs de Dragons, Guillaume Evernel, Arthur Qwak****(*)
261. Metropia, Tarik Salch***(*)
262. La Piel que Habito, Pedro Almodóvar*****
263. Beautiful Boy, Shawn Ku****(*)
264. Merlin and the War of Dragons, Mark Atkins**
265. Another Earth, Mike Cahill****(*)
266. The Hangover, Todd Phillips****
267. Dragons: Gift og the Night Fury, Tom Owens*****
268. The Happening, M. Night Shyamalan****
269. Solomon Kane, Michael J. Bassett***(*)
270. Due Date, Todd Phillips****

domingo, novembro 06, 2011

três poemas de (Ana) Paula Tavares

´

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

***

O meu amado chega e enquanto despe as sandálias de couro
marca com o seu perfume as fronteiras do meu quarto.
Solta a mão e cria barcos sem rumo no meu corpo.
Planta árvores de seiva e folhas.
Dorme sobre o cansaço
embalado pelo momento breve de esperança.
Traz-me laranjas. Divide comigo os intervalos da vida.
Depois parte.
...........................................................................................
Deixa perdidas como um sonho as belas sandálias de couro.

*****

Perguntas-me do silêncio
eu digo

meu amor que sabes tu
do eco do silêncio
como podes pedir-me palavras
e tempo
se só o silêncio permite
ao amor mais limpo
erguer a voz
no rumor dos corpos


Paula Tavares, O Lago da Lua, Lisboa: Caminho, 1999, p.17, 19, 29.

quarta-feira, novembro 02, 2011

A minha palavra favorita - Girassol



das muitas palavras que povoam a minha língua, girassol tem-me sido a mais afetiva. retorno e regresso e ciclo. ver, seguir, observar. um ser que tem como atitude seguir a luz parece ser um exemplo ignorado. razão tinha Caeiro por nele ver uma figura a elogiar - «o meu olhar é nítido como um girassol» - nítido porque cheio de luz, a luz do Sol, e ele próprio ser um olho de inexcedível beleza e rigor. o girassol foi feito para ver e estar atento, mas também para estarmos atentos a ele e para o vermos. e podemos também tocar-lhe a pupila, na rugosidade agradável da perfeição. seguir sem sair do sítio, ser do tamanho do que se vê, percorrer a distância da solidão com a vontade, o gesto. o amarelo é cópia, é propósito solar reafirmado, o verde das folhas vida que se agita e constrói em torno da luz, sol terrestre em menor tamanho. palavra justa, verbo e nome em nome, com a flor, verbo e nome em ação e essência. assim é por vezes o amor, quando nos torna girassóis uns dos outros - uns dos outros, porque de si é já o Narciso e é outra história e outra palavra bem diferentes. ou ser o oposto de tudo isto, de tudo e todos. girassol que, no meio dos outros, preferisse ver o espaço subitamente iluminado. ou, mais linearmente, o girassol que rema contra a maré.

cf. esta história das palavras favoritas.

domingo, outubro 30, 2011

Desafio: 10

Mês de tudo e muito preenchido, em que se rouba ao sono, à perda de tempo em deslocações e em cozinhar, coisas assim. É assim que se faz. O desafio continua em bom ritmo e parece-me, ainda, que será realizável, assim me ajudem todos os deuses do Olimpo :)
Destaque para Al Berto e sua poesia, e ainda para José Jorge Letria, nos livros. Nos filmes, Melancholia, Little Miss Sunshine e Midnight in Paris foram as melhores novidades ou surpresas. Tempo para rever The Lord of the Rings, agora em versão (mais) longa e para, finalmente, ver os Pirates of the Caribean...
Um sábado foi passado com Kate Winlet, ou antes, com Mildred Pierce - e foi muitíssimo muito bem passado, recomendo :)
Em Braga, entre a muita oferta, aproveitei para ir ver Teatro Menor, uma peça de teatro feita de pequenos quadros reflexivos, filosóficos, metalinguísticos e de que gostei muito, e ainda para voltar a «ouver» Rodrigo Leão e Cinema Ensemble, outra vez - genial.


Livros:

111. O Macaco Gramático, Octavio Paz, DN, 128p.***
112. Caderneta de Cromos Contra-Ataca, Nuno Markl, Objetiva, 236p.*****
113. O Medo, Al Berto, Assírio & Alvim, 704p.****(*)
114. Lunário, Al Berto, Assírio & Alvim, 166p.***
115. Lenha Seca, Costa Andrade, UEA, 84***
116. Arcano Dezenove, Renata Bomfim, Flor de Cultura, 100p.**(*)
117. Contos Impopulares, Agustina Bessa-Luís, Guimarães, 224p.***
118. Bola com Feitiço, Uanhenga Xitu, BI, 80p.***
119. Produto Interno Lírico, José Jorge Letria, Visão, 56p.*****
120. As vozes de Marraquexe, Elias Canetti, Planeta, 140p.*****
121. O Canto da Corvina Preta, Mario Delgado Aparaín/Incidente na Rua 9 Este, Jill Drower, Asa, 48p.****
122. Menina a Caminho, Raduan Nassar, Cotovia, 84p***(*)

Filmes:

208. The Tree of Life, Terrence Malick**(*)
209. Little Miss Sunshine, Jonathan Dayton e Valeria Faris*****
210. Attack the Block, Jor Cornish**
211. Horrible Bosses, Seth Gordon****
212. Drive, Nicolas Winding Refn****
213. The Perfect Host, Nick Tomnay**
214. Ironclad, Jonathan English****
215. Melancholia, Lars Von Trier*****
216. Hitch, Andy Tennant****
217. Sanctum, Alister Grierson***(*)
218. To Save a Life, Brian Baugh**(*)
219. The Back Up Plan, Alan Poul***(*)
220. Everyone's Hero, Colin Brady, Christopher Reeve e Dan St. Pierre***(*)
221. El Estudiante, Roberto Girault*****
222. Orphan, Jaume Collet-Serra****(*)
223. Midnight in Paris, Woody Allen*****
224. Baby Blues, Lars Jacobson e Amardeep Kaleka**
225. L'Affaire Farewell, Christian Carion*****
226. Lissi und der wilde kaiser, Michael Herbig***(*)
227. Pirates of the Caribean: The Curse of the Black Pearl, Gore Verbinski****(*)
228. Pirates og the Caribean: The Dead Man's Chest, Gore Verbinski*****
229. Pirates of the Caribean: At World's End, Gore Verbinski*****
230. Pirates of The Caribean: On Stranger Tides, Rob Marshall****
231. Crazy, Stupid, Love, Glenn Ficarra e John Requa*****
232. Rubber, Quentin Dupieux*(*)
233. Monsters vs Aliens, Rob Letterman et alii****
234. Planet 51, Jorge Blanco et alii*****
em versão «Blu-Ray extended» a trilogia:
235. The Lord of the Rings: The Fellowship of the Ring, Peter Jackson*****
236. The Lord of the Rings: The Two Towers, Peter Jacjson*****
237. The Lord of the Rings: The Return of the King, Peter Jackson***** 
238. Grindhouse - Planet Terror, Robert Rodriguez***(*)
239. Grindhouse - Death Proof, Quentin Tarentino,**(*)
240. $9.99, Tatia Rosenthal****(*)

sábado, outubro 29, 2011

três poemas de José Jorge Letria



Teoria geral da chuva

A chuva não sabe enterrar os mortos
nem apagar a dor de quem os chora.
É torrencial e abrupta como a paixão
invernosa dos amantes sem remorso.
À noite oiço-a bater no telhado, sincopada,
com a sua presença felina e esquiva,
e cada gota é uma sílaba, um aviso,
um compasso triste de um alonga espera.
E a chuva vai e volta, herdeira
da pureza das fontes e da saudade das águas.
Vêm os mortos e lavam-se na chuva,
com os seus cântaros e as suas conchas,
com os seus crepes e com os seus murmúrios.
Por vezes, acende-se uma luz dentro da chuva
e a noite torna-se retangular e ostensiva,
sem nada que a comprometa com a ternura.
Escancara as portas e expulsa os intrusos.
Nunca procurei ninguém nos recantos da chuva,
nem nas folhas do chá, nem na insónia
das bebidas espessas e recônditas.
A chuva aprendeu a lavar as almas,
mas depressa se esqueceu do método e da hora,
porque é leviana e volátil como os corpos
que se entregam e se esgotam no furor da conquista.
Foi a chuva que me encheu a boca
de vocábulos lamacentos e brutais
que não são sequer dignos do leitor.


***

As cidades cúmplices

As cidades são a minha fuga, o meu refúgio,
o meu lugar de não ter nome, de não ter casa.
Fujo para as cidades para me perder de mim,
para só me encontrar nos livros que trago
dos esconderijos mais secretos das cidades.
As cidades são as minhas cúmplices. Elas sabem-no.
Tal como acontece com os livros,
sei que nem dez vidas me chegariam para as ler,
para as aprender, para me apaixonar por elas.
São amores fugazes, apressados, indolores.
Não deixam cicatrizes nem remorsos. Apagam-se devagar,
como os círculos ou as estrelas desenhadas a giz
no quadro mais negro do negrume da tristeza.
As cidades são o cálice minguado
em que entorno a luz em vez de vinho,
em que derramo a espuma em vez do néctar.
Retrato-as, retrato-me nelas vorazmente,
sempre a cores, junto das fontes, à porta das catedrais,
sobre as pontes, encostado às estátuas
que dão sombra à sonolência alada dos pombos doentes.
Eu nunca trago as cidades comigo.
Deixo nelas, como penhor da alma, o fio de uma saudade
que o tempo se encarrega de cortar
no ponto em que a ausência sabe a mágoa.

*****

Sobre os poetas que inventam
 
Tenho na mesa uma estrela do mar
e na almofada uma rosa dos ventos.
Tudo me sabe a viagem, mesmo quando
permaneço imóvel, separando no cais
o centeio e o vinho, a pimenta e o ouro.
Não fui almirante de nenhuma armada
nem grumete de nenhum naufrágio;
fui a nau frágil da loucura das ondas,
o albatroz rendido ao chamamento do longe,
a sereia apodrecida nas redes da faina.
Nesse tempo em que eu era tudo e não era nada,
em que existia somente na perdição dos mapas,
vinham as viúvas chorar por mim
com lágrimas do tamanho de pérolas,
do tamanho de conchas no desespero das dunas.
Ai dos poetas que se alimentam apenas do vivido,
ai dos olhos vencidos pela evidência do real.
Eu sou dos que inventam, dos que sempre inventaram,
dos que não podem ser levados a sério,
mesmo quando vestem a roupagem da tristeza absoluta.
Um poeta não pode resumir-se ao que é tangível,
sob pena de ser pequeno de mais para caber num verso.



José Jorge Letria, Produto Interno Lírico, Lisboa: Visão-Frente e Verso, 2010, p.11-12, 24,33.

Voltar

houve lugar para «Voltar» na quinta-feira, no Theatro Circo.
voltar a ouvir em presença Rodrigo Leão e o Cinema Ensemble,
voltar a emocionar-me com muitas músicas e muitas canções,
e voltar ao «Voltar», música de amores passados :)



sábado, outubro 22, 2011

Al Berto e Wordsong

Wordsong sobre a poesia de Al Berto. Três exemplos abaixo, aqueles que foi possível encontrar no youtube. Faltam algumas das minhas favoritas como «14 de janeiro», «Telegrama STOP», «Horto dos Incêndios», «Amar, Amar-te»...




«Ouve-me»



«Les Mots»



«Cabeça de Vidro»



uma mão cheia de poemas de Al Berto




é tarde meu amor
estou longe de ti com o tempo, diluíste-te nas veias das marés, na saliva de meu corpo sofrido
agora, tuas máquinas trituram-me, cospem-me, interrompem o sono
habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido dos corais… e no ventre impossível das cidades nocturnas
a solidão tem dias mais cruéis

tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro… quis ser grande e morrer contigo
enfeitar-me com as tuas luas brancas, pratear a voz em tuas águas de seda… cantar-te os gestos com ternura
mas não

águas, águas inquinadas pulsando dentro de meu corpo, como um peixe ferido, louco
em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem nome-de-rua, nem estátua-de-jardim-público
aceito o desafio do teu desdém

na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição
apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras tristes que te cantam.

***

envolver-me na mais obscura solidão das searas e gemer
amassar com os dentes uma morte íntima
durante a sonolência balbuciante das papoulas prolongar
a vida deste verão até ao mais próximo verão
para que os corpos tenham tempo de amadurecer

colher em teu sexo o sumo espesso
e no calor molhado da noite seduzir as luas
o riso dos jovens pastores desprevenidos... as bocas
do gado triturando o restolho... as correrias inesperadas
das aves rasteiras

e crescerei das fecundas terras ou da morte
que sufoca o cio da boca
subirei com a fala ao cimo de teu corpo ausente
transmitir-lhe-ei o opiáceo amor das estações quentes


***

11 de Março

definha-se texto a texto, e nunca se consegue escrever o livro desejado. morre-se com uma overdose de palavras, e nunca se escreve a não ser que se esteja viciado, morre-se, quando já não é necessário escrever seja o que for, mas o vício de escrever é ainda tão forte que o facto de já não escrever nos mantém vivos. morre-se de vez em quando, sem que se conheça exactamente a razão, morre-se sempre sozinho.
nunca fui um homem alegre. morro todos os dias, como poderia estar alegre?
sento-me e medito na busca de novas palavras. tornou-se quase inútil escrevê-las; chega-me saber que, por vezes, as encontro, e nesses momentos readquiro a certeza dalguma imortalidade.


****

[excertos de Carta da Flor do Sol (a meu amigo)]

vou partir
como se dosses tu que me abandonasses

(...)

sabes
por vezes queria beijar-te
sei que consentirias
mas se nos tivéssemos dado um ao outro ter-nos-íamos separado
porque os beijos apagam o desejo quando consentidos
foi melhor sabermos quanto nos queríamos
sem ousarmos sequer tocar nossos corpos
hoje tenho pena
parto com essa ferida
tenho pena de não ter percorrido teu corpo
como percorro os mapas com os dedos teria viajado em ti
do pescoço às mão da boca ao sexo
tenho pena de nunca ter murmurado teu nome no escuro
acordado
perto de ti as noites teriam sido de ouro
e as mãos teriam guardado o sabor de teu corpo
ah meu amigo
estou definitivamente só


*****

Recado


ouve-me
que o dia te seja limpo e
a cada esquina de luz possas recolher
alimento suficiente para a tua morte
vai até onde ninguém te possa falar
ou reconhecer - vai por esse campo
de crateras extintas - vai por essa porta
de água tão vasta quanto a noite

deixa a árvore das cassiopeias cobrir-te
e as loucas aveias que o ácido enferrujou
erguerem-se na vertigem do voo - deixa
que o outono traga os pássaros e as abelhas
para pernoitarem na doçura
do teu breve coração - ouve-me

que o dia te seja limpo
e para lá da pele constrói o arco de sal
a morada eterna - o mar por onde fugirá
o etéreo visitante desta noite

não esqueças o navio carregado de lumes
de desejos em poeira - não esqueças o ouro
o marfim - os sessenta comprimidos letais
ao pequeno-almoço

Al Berto, O Medo, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p.160, 262, 365, 405-414, 605

pequena obsessão aqui.

segunda-feira, outubro 17, 2011

melancolia dos dias

Alex Turner, «Hiding Tonight»


The Temper Trap, «Love Lost»

segunda-feira, setembro 26, 2011

Desafio: 09

com o aproximar do fim do ano, a passos largos, os desafios realinham-se. de repente, 150 livros num ano parece-me possivel (mesmo que tenham de ser um pouco mais pequenos) e 300 filmes também. muito pela frente, pois claro, mas no bom caminho. será um ano muito cheio e de números irrepetíveis. e será bom!
regresso a Mário de Carvalho e a Pedro Eiras, senhores de quem gosto muitíssimo, descoberta mais profunda de José Cardoso Pires e a descoberta prática de Rui Sousa Basto (livro belíssimo verbal e iconicamente), Jack London  e José Mauro de Vasconcelos (e seu livro que me fez chorar muitas vezes... ). nos filmes, muitos filmes bons, com destaque para o cinema proveniente de muitos sítios que não os EUA, para variar :)
houve ainda tempo para o teatro, com a F, no Theatro Circo. Jardim foi a proposta da Companhia de Teatro de Braga - sobre Inês, Pedro, Constança, com uma parafrenália de sons, objetos, multimédia e outros que levaram à exaustão e pouca resistência aqui do espetador...


livros:

95. O Homem do Turbante Verde, Mário de Carvalho, Caminho, 190p.****(*)
96. Jogos de Azar, José Cardoso Pires, Planeta deAgostini, 246p.***
97. O Delfim, José Cardoso Pires, Visão/JL/D. Quixote, 190.*****
98. Balada da Praia dos Cães, José Cardoso Pires, Público/Mil Folhas, 254p.***
99. A República dos Corvos, José Cardoso Pires, Bis/Leya, 160p.*****
100. Contos do Efémero, Rui Sousa Basto, Opera Omnia, 72p.*****
101. Nos Joelhos do Silêncio, Heliodoro Baptista, Caminho, 96p.***
102. Reflexões sobre o Sr. Pessoa, John Wain, 56p.****
103. Meu Pé de Laranja Lima, José Mauro de Vasconcelos, Dinapress, 196p.*****
104. A Peste Escarlate, Jack London, Quasi, 96p.***
105. O Apelo da Selva, Jack London, Vega, 104p.*****
106. Fractura, Eduardo Pitta, Angelus Novus, 40p.***
107. Aforismo de aforismos, Vicente Sanches, Cotovia, 58p.***
108. Quinto Império ou A Musa da Casa de Sêr, Vicente Sanches, Cotovia, 104p.*****
109. Os Três Desejos de Octávio C., Pedro Eiras, Relógio D’Água, 176p.*****
110. A Fera na Selva, Henry James, Quasi, 94p.***

filmes:

178. Thor, Kenneth Branagh****
179. Little Deaths, Sean Hogan et alii**
180. Haevnen, Susanne Bier*****
181. Watchmen, Zack Snyder*****
182. The Beaver, Jodie Foster*****
183. The Tempest, Julei Taymor***
184. Tangled, Nathan Greno e Byron Howard****(*)
185. London Boulevard, William Monahan***(*)
186. Vidocq, Pitof****
187. Death in Love, Boaz Yakin***
188. Shaum of the Dead, Edgar Wright*****
189. The Deep End, Scott McGehee e David Siegel****
190. TrolljegerenAndré Øvredal***
191. Your Higness, David Gordon Green****(*)
192. Animals United/Konferenz der Tiere, Reinhard Kloos e Holger Tappe****(*)
193. Uninhabited, Bill Bennett****
194. Sykt Lykkelig, Anne Sewitsky****(*)
195. The Tree, Julie Bertucelli*****
196. Como Desenhar um Círculo Perfeito, Marco Martins***(*)
197. The Presence, Tom Provost***
198. After the Waterfall, Simone Horrocks****
199. Good Night, and Good Luck, George Clooney****(*)
200. The Way, Emilio Estevez*****
201. Kynodontas, Giorgos Lanthimos***
202. It's Kind of a Funny Story, Anna Boden e Ryan Fleck*****
203. Submarine, Richard Ayoade*****
204. Dylan Dog, Kevin Munroe***
205. The Ward, John Carpenter***(*)
206. Gnomeo and Juliet, Kelly Asbury*****
207. Arn - Tempelriddaren, Peter Flinth****

súbita melancolia


«Blood», The Middle East



«Quiet Times», Dido

sábado, setembro 24, 2011

2 poemas de Heliodoro Baptista




Ao Futuro

Saberás um dia que o amor nunca
nasce, nunca deve. O amor é,
sempre foi, sempre esteve.

Rigorosamente contemporâneo
da explosão cósmica
que, contam, declinou ao princípio
do escuro e da luz.
Seguiu-se o espontâneo ciclo
das épocas, das glaciares estações.
Os continentes são da mesma raça.
Os homens do mesmo barro.

Saberás que, para haver história,
os homens mataram e morreram,
morreram e mataram.
Explicaram, em orgias de palavras,
onde nada havia para explicar,
porque tudo se intuía,
o princípio foi só um
e a vida ligou-se à vida.

Saberás
que o amor é tudo
e o tudo nunca foi cognoscível.
Como o nada.

Nunca aceites ser mártir.
Ama o teu presente e o futuro
e, por certas tardes de sábado,
de olhos porventura humedecidos,
limpa docemente a minha tumba.
(Ou, por outra, deposita
as minhas cinzas na caixa
de sândalo: nosso diálogo
terá o sopro indistinto de Apolo
e o mágico da harmonia sem lágrimas!)


****

Thandi

escrevemos na pele:
a morte não existe
porque já dormimos sobre ela;

se se passa alguma coisa? não, meu amor;
ou seja, passa-se absolutamente tudo!
e o tudo é o pão
que nunca houve neste nada;
(mas o nada será o princípio de tudo,
estas já longas servidões humanas);

esquino, te reescrevo, Thandi; e se tenho palavras
é porque imito o canto
de uma ave fecundada adulta;

(claro que o lirismo não se prende ou rotula:
aceita-se tarde ou se nega e muito cedo);

mas o poeta tem boca:
as metáforas o seu ardil,
para que outros leiam
o que ele nunca disse. 

Heliodoro Baptista, Nos Joelhos do Silêncio, Lisboa: Caminho, 2005, p.20-21, 70.



considerações e ligações sobre o poeta aqui.

segunda-feira, setembro 12, 2011

O Sr. Pessoa



Costa Pinheiro, O chapéu do poeta Fernando Pessoa, 1979.
Óleo s/ tela 100 x 100cm.



Ele, o Sr. Pessoa, acolhia bem a vida. Vamos escrever com letra grande:
ama e era sensível à Vida, e se ela assumia um semblante
ele ficava contente por saudá-la e tinha o quarto limpo expressamente
para acolher a deusa - mas não tentava prendê-la ou demorá-la.
Há homens que se portam como se a Vida fosse uma jovem apetecida:
armas ciladas, fazem negaças, exibem-se se sabem que ela os vê.
O Sr. Pessoa por seu lado lidava com a vida mais como vizinho:
ela nunca andava longe e ele tinha a certeza de a encontrar às vezes.
Costumavam falar na rua, cavaqueio sem outras intenções,
às vezes ela passava lá por cada e então durava mais o convívio,
ela era visita, ele anfitrião, e o diálogo parecia mais estruturado
depois, já de saída, mais um sorriso, cinco minutos de conversa à espera do carro.
O grande desejo do Sr. Pessoa era só que a Vida o aceitasse
como presença sem pretensões, amante que não ousava possuí-la:
ficar ali quieto, confiante, até ao dia de irem buscar o seu caixão.


John Wain, Reflexões sobre o Sr. Pessoa, Lisboa: Cotovia, 1993, p.29