Ao Futuro
Saberás um dia que o amor nunca
nasce, nunca deve. O amor é,
sempre foi, sempre esteve.
Rigorosamente contemporâneo
da explosão cósmica
que, contam, declinou ao princípio
do escuro e da luz.
Seguiu-se o espontâneo ciclo
das épocas, das glaciares estações.
Os continentes são da mesma raça.
Os homens do mesmo barro.
Saberás que, para haver história,
os homens mataram e morreram,
morreram e mataram.
Explicaram, em orgias de palavras,
onde nada havia para explicar,
porque tudo se intuía,
o princípio foi só um
e a vida ligou-se à vida.
Saberás
que o amor é tudo
e o tudo nunca foi cognoscível.
Como o nada.
Nunca aceites ser mártir.
Ama o teu presente e o futuro
e, por certas tardes de sábado,
de olhos porventura humedecidos,
limpa docemente a minha tumba.
(Ou, por outra, deposita
as minhas cinzas na caixa
de sândalo: nosso diálogo
terá o sopro indistinto de Apolo
e o mágico da harmonia sem lágrimas!)
****
Thandi
escrevemos na pele:
a morte não existe
porque já dormimos sobre ela;
se se passa alguma coisa? não, meu amor;
ou seja, passa-se absolutamente tudo!
e o tudo é o pão
que nunca houve neste nada;
(mas o nada será o princípio de tudo,
estas já longas servidões humanas);
esquino, te reescrevo, Thandi; e se tenho palavras
é porque imito o canto
de uma ave fecundada adulta;
(claro que o lirismo não se prende ou rotula:
aceita-se tarde ou se nega e muito cedo);
mas o poeta tem boca:
as metáforas o seu ardil,
para que outros leiam
o que ele nunca disse.
Heliodoro Baptista, Nos Joelhos do Silêncio, Lisboa: Caminho, 2005, p.20-21, 70.
considerações e ligações sobre o poeta aqui.
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