sábado, janeiro 21, 2012

5 poemas de João Luís Barreto Guimarães



apetece por vezes com os dias morrer por um pequeno
instante e deixar os fogos soltos na areia: acrescentar
água à face e perturbar os sentidos em busca da única
luz ou então sentir os movimentos e escrever a uma

amiga. dizer assim como quem fala: que espécie rara
de deus é o teu? a vida é ficar abraçado às dunas
apenas se há dois braços de areia por quem sonhar.

vir então aos poucos contando os mastros do verão
cumprindo o desejo das cartas de mar e assim
mesmo confundir todos os relógios da rota só
apenas para ter mais tempo para ficar. o resto é saber

o alfabeto de cor até ao fim para que as palavras vão
nascendo devagar até ser sonho no sono dos dias
ou ser sono dentro de mim

***

um gato assim era quase um sítio perdido entre
o pelo e o acordar pequena fábula sonhada por
entre as patas quem o enviou quis ensinar ao

mundo o sentimento da inveja. a mãe tirava da
boca para lhe dar assim mesmo o lorde mentia
na hora a que chegava das sete vidas paralelas.
um dia fugiu pela manhã o (in)g(r)ato mesmo

sem se despedir ou pagar o que levou:
a coleira nova e o guizo ................... 150$00
duas latas de comida ...................... 395$00
um saco de areia higiénica ............... 200$00

dá notícias pedaço de deus se acordares desse
intrigante sono repousando de (qual?) cansaço
que pensas tu afinal de Ivan Petrovich Pavlov?


****

deixar assim como que por mistério as
mãos tomarem o atalho do coração como
se os olhos fossem sábios para isso e
nada menos que tudo exigíssemos: sermos

eremitas nos nossos próprios sentimentos
(rasgar desenhos do pôr do sol com um
arpão no coração) e mesmo o céu: trazê-lo

sempre azul sempre muito mais azul. é
dessa cor perfeita que falo por imagens
de dentro é esse o lugar onde as rochas
são grãos de areia no tempo. o pescador

sempre regressa (mil viagens passadas)
para pousar os sentidso e medir rumos
pelo pulso das dunas no coração

****

9 de novembro

O vendedor de castanhas quer duzentos pela dúzia. Embrulha-as de amarelo se a compra é feminina, em folhas telefónicas brancas se quem as descasca é rapaz.
A gata escapa do frio e entra pelo Café. Aproveita o caixilho para afagar todo o pelo, do focinho à cauda ao focinho. Deixa-se ficar ali, circulando entre as mesas, atenta à pressa das mãos que celebram o outono com migalhas já maduras.
O letreiro à entrada diz que bicho algum pode entrar. O mais certo é que a gata ainda não saiba ler.

***

A noite passada enviei um SMS ao meu Pai
mas ele não respondeu. Já kontava kom issu. O
corpo dele baixou faz
outro mês amanhã
nenhum de nós destinou o Sony Ericsson dele
ao rectângulo do caixão. Era
de um género antigo (outrossim
muito estimado)
algumas horas ligado mesmo sem conversação
começava a avisar: bateria esgotada.
Duvido porém que a rede fosse boa
lá no fundo.
Quando descia aos arrumos era o que acontecia.
Sucede que agora se quero falar com ele
tenho de ligar a Deus. E eu não falo com Ele.
Não quero ter de calar (olhando-O
olhos nos Olhos:)
«uma morte nunca é justa»
«foi demasiado cedo» «já agora
passe aí a meu Pai».
Já tenho ligado para Deus
parece dar sempre ocupado.


João Luís Barreto Guimarães, Poesia Reunida, Lisboa: Quetzal, 2011: 31, 53, 89, 112, 274

2 comentários:

Anónimo disse...

Tão bonitos! É só que consigo dizer.
Beijo, Tiago.

Isabel

tulisses disse...

são mesmo, gostei muito de conhecer a poesia deste senhor.ando assim para o sensível a estas coisas. ´

beijo