sexta-feira, novembro 02, 2012

duas perdas em outubro

A poesia vai acabar

A poesia vai acabar, os poetas
vão ser colocados em lugares mais úteis.
Por exemplo, observadores de pássaros
(enquanto os pássaros não
acabarem). Esta certeza tive-a hoje ao
entrar numa repartição pública.
Um senhor míope atendia devagar
ao balcão; eu perguntei: «Que fez algum
poeta por este senhor?» E a pergunta
afligiu-me tanto por dentro e por
fora da cabeça que tive que voltar a ler
toda a poesia desde o princípio do mundo.
Uma pergunta numa cabeça.
— Como uma coroa de espinhos:
estão todos a ver onde o autor quer chegar? —


Manuel António Pina, Todas as Palavras, Lisboa: Assírio & Alvim, 2012, p.38
 
 
***
 
Procurarei, tanto quanto possível, não fazer muita literatura, da qual me acho afastado há muitos anos, desde os meus tempos de Faculdade de Direito, quando cometi alguns poemas, reunindo-os em livro, dividido em duas partes, de sonetos parnasianos e poemas modernistas, que tive o bom senso de não publicar.
Não escrevo mais poesia, o meu amior prazer, vício mesmo, é a leitura, a que me entrego muitas vezes horas a fio, neste tempo sem fim de Duas Pontes; é o consolo de uma triste vida, no meu escritório, longe de Sofia.
Farei todo esforço possível para ser objetivo, eu que sou dado aos vôos das divagações desnecessárias. É preciso silenciar o coração, que acredita ter muito a dizer, e procurar a objetividade que devem ter as coisas escritas, mesmo quando se descrevem, estados delirantes - nestes casos, devemos parar, registro numa releitura que fiz dos meus primeiros cadernos. Mas não posso esquecer que muitas vezes consideramos teorização o que é apenas devaneio erradio de uma alma angustiada.
 
Autran Dourado, Confissões de Narciso, Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2003, p.14-15

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