segunda-feira, abril 18, 2005

Como um Romance de Daniel Pennac - Comentário, parte 1

Como um Romance tem este título porque se lê como se fosse um verdadeiro romance, mas é, no fundo, um ensaio sobre as relações que as crianças e jovens estabelecem com a leitura.
O autor analisa várias situações que lhe são fornecidas pela sua experiência de pai e de professor e, obviamente, de leitor. A questão impõe-se desde o início: qual o motivo para os jovens não gostarem de ler? É ideia quase consensual de que os jovens não lêem e que não gostam de o fazer quando têm necessidade disso, a nível escolar.
O filho mais velho do autor tem de ler um livro para a escola e não consegue avançar na leitura. A televisão (passividade, facilidade), jogos electrónicos, “o anacronismo dos programas, a incompetência dos professores, a decrepitude das instalações escolares, a falta de bibliotecas” podem ser alguns dos motivos que levam o jovem a afastar-se do livro. Ler é um acto que exige maior esforço intelectual do que assistir a um qualquer programa de televisão, em que muitas vezes só na imagem reparamos. O que se deve tentar fazer é arranjar tempo para a televisão, a música, os jogos, as saídas em grupo e a leitura.
Uma das estratégias de levar a um encantamento para a leitura é a descrita pelo autor em vários dos capítulos da obra: ler histórias aos meninos, desde pequenos, exactamente antes de irem dormir. Toda a magia dos mundos ficcionais, criados pelas leituras feitas pelos pais, levam a criança a iniciar um gosto pela leitura, que mais tarde se traduz não pela audição da história mas sim pela leitura da mancha gráfica, leitura feita pela própria criança. Esta prática poderá vir a criar na criança o gosto e até a necessidade de continuar a ler.[1] A escola não pode é quebrar este encantamento. Por um lado, os pais devem continuar a insistir nas leituras antes da hora de dormir, por outro, a escola tem de potenciar leitores, atraí-los, e não afastá-los (programas desajustados, métodos de leitura desinteressantes, …). É isto que acontece ao filho mais velho do autor: por um lado, a escola e seus programas, pelo outro, a “Trindade” formada entre o menino, o pai e o livro quebrou-se, deixando-o sozinho com o livro que acaba por se lhe tornar “hostil”. Pode-se retomar a actividade de ler para o jovem, criando novamente a magia pelos mundos paralelos que surgem, até que o jovem nos peça para ser ele a ficar sozinho com o livro, para criar uma outra intimidade e superar barreiras por si mesmo.
Além disto, o autor chama a atenção para a “gratuidade do prazer de ler”, ou seja, ler é um prazer pessoal e os adultos (pais ou professores) não devem exigir ao jovem a prova de uma competência, não lhe apresentar o livro como esforço a ser vencido...
Na segunda parte da obra, o autor, valendo-se da sua experiência como professor, começa por abordar a questão da leitura referindo expectativas dos pais, professores e até dos alunos (perante a leitura). A primeira grande constatação é a de que os jovens não têm tempo para estarem consigo mesmos e com o livro, (é o piano, desportos, festinhas, aulas suplementares de línguas e de informática,...).
Sugere a ideia de “dar a ler”, ou seja, a ideia de que “o culto do livro resulta da tradição oral”, que vai ser demonstrado depois na terceira parte da obra. Este trabalho pode e deve ser desenvolvido pelo professor na sala de aula (o professor de língua materna, sobretudo, mas também os outros), e pode passar, por exemplo, por actividades como a leitura em voz alta de um livro durante uma aula ou, posteriormente a esta prática, a criação de bibliotecas de turma, clubes de leitura, … Trata-se de criar leitores, mas esta criação deve ser entendida somente como uma redescoberta do prazer de ler (“Acontece apenas que o prazer de ler estava ali à mão de semear, sequestrado nos sótãos adolescentes por um medo secreto: o medo (muito antigo) de não compreender”). O objectivo é criar leitores, através da leitura na sala de aula em voz alta de romances, contos… Deixar crescer um gosto pelas histórias, pelas personagens, pelo livro, pela vontade de querer saber o que se segue a determinado acontecimento; esperando que com isto os alunos cheguem a tal ponto de curiosidade que vão eles próprios procurar o livro na biblioteca, em casa ou na livraria para descobrirem o resto da história, ou até, que comecem, eles próprios, a procurar livros que lhes poderão interessar para ler. Assim, afasta-se a ideia de que ler custa, não tem interesse, utilidade/prazer, de que não se percebe nada do que os escritores escrevem, …
Uma das ideias principais da terceira parte é a de que os livros que estão nos programas são sempre “chatos” e os alunos lêem outras coisas (humoristicamente, o autor diz que Madame Bovary é “seca” para os alunos franceses que têm de o ler na escola, enquanto que para os alunos americanos é já uma obra “interessante”, porque não faz parte do seu currículo, e a correspondência completa-se com a obra de Salinger L’atrape-couer, de que os americanos não gostam e que os alunos franceses lêem com prazer). Isto porque se uma obra está num programa escolar ela tem de ser chata e não se faz o esforço de a ler por se ter medo de não compreender (e temem-se as avaliações...).
Reforça-se a ideia de gratuidade da leitura: para haver esta reconciliação com a leitura, o professor não deve pedir nada em troca (exigir comentários, resumos, fichas...), porque quando a reconciliação estiver feita serão os leitores a questionar-se sobre o contexto cultural do livro, a biografia/obra do autor, e eles próprios falarão do que leram.
Contar livros é também uma técnica de sedução, nem que seja um resumo em três palavras, como diz o autor, desde que consiga prender a atenção de um futuro leitor dessa obra.

[1] Se bem que existam casos de crianças a quem nunca leram histórias e que mais tarde se tornam leitoras, e o oposto também aconteça…