quarta-feira, maio 10, 2006

Inventário das Coisas Sós (pequenos excertos de uma grande obra ainda por escrever)

No início era o verbo, assim dizem. Deus, sozinho no seu poder, cria o universo, as estrelas e planetas em redor delas, satélites em redor deles. Nesses planetas, ou pelo menos num deles, cria uma série vidas que culmina no homem. Há quem diga que tudo foi criado para o homem, que na altura era apenas Adão, o grande nomoteta da história. Mas na verdade, ou na minha, Deus fez tudo por um acto egoísta e um pouco louco de destruir a sua solidão infinita. Pouca sorte teve, pois logo teve de expulsar os seus novos amigos porque estes se portaram menos bem. No meio disto tudo não sei onde ficam os anjos nem as outras pessoas que são Deus: uma pessoa trina não pode sentir-se só… mas nem todas as Pessoas são compreensíveis às luzes da lógica e da matemática.




Todos os degraus da escada sentiram o seu peso e se prestaram como encosto para as costas curvadas pela avidez ainda, mas cada vez menos, cega de ler nitidamente. Por vezes rangiam como se lhes custasse ou então como se se condoessem com situação tão estranha. E também eles, todos seguidos uns aos outros, permitindo reinventar constantemente o mito de Ícaro, numa versão mais segura, se sentiam sozinhos porque nunca estavam no mesmo plano para poderem ser-se iguais. E, no fundo, o soalho de madeira era apenas uma escada cujos degraus tinham conseguido superar o estado de desigualdade e unir-se solidamente. Ou o contrário – talvez no início tudo fosse conjunto e só com o passar dos tempos as coisas se transformaram e se tornaram sós.


Naquela noite os livros pareciam respirar. Por entre as cortinas brancas, algumas esfarrapadas, os seus sussurros eram cicios mornos, estranhos, roçando as orelhas, a nuca, o pescoço. Deitado no chão, Alberto sentiu uma súbita tentação de volúpia, um desejo de ternura, de contacto, de entrega e abandono de si. As mãos, tantas vezes vazias, enchiam-se agora de desejo satisfeito, a pouco e pouco. Cá fora, as folhas agitavam-se com o vento nocturno e algumas amoras mais maduras caíam no chão.

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