segunda-feira, janeiro 29, 2007

Auto(r)fagia



Ao sentar-se diante da lareira, João reparou na beleza das labaredas. Estendeu as mãos e aqueceu-as, esfregando-as uma na outra. Depois retirou-as e ficou a contemplar as brasas e algumas chamas que ainda irrompiam do cavaco, por ele cortado no verão. Agora era frio e todos se juntavam à noite à lareira, na cozinha, para se aquecerem do frio do corpo e da alma.
João tinha ficado em casa todo o dia porque na véspera quase tinha ficado sem uma perna num acidente com o carro de bois, e a família achara por bem deixá-lo sarar-se antes de voltar a trabalhar. Não tardaria todos estariam ali, a comer e a conversar. Por fim, teria de cumprir a promessa feita aos filhos já há alguns dias: contar um conto dos antigos, mas novo: um que eles ainda conhecessem. Isso era difícil porque a avó sabia tantos e tão inumeráveis que mas ninguém conhecia - mas agora estava muito velha e já não dizia coisa com coisa. Por isso João não sabia o que contar porque tudo o que sabia tinha aprendido com a anciã.
Passando as mãos pela barba pensou que o melhor era contar uma história igual, mas com algumas alterações, como já lhe ocorrera ontem, antes do acidente (segundo ele, para ele próprio, tinha-se distraído a pensar na conto e por isso é que a roda que caíra em cima da perna). Bem vistas as coisas, alterados teriam de ser os sítios e os nomes das pessoas, ou as profissões… coisas usadas também, claro. Depois era fácil construir uma nova história.
- Ora então – murmurou, enquanto tentava escolher o conto que o inspiraria, comecemos por… No início tem de acontecer alguma coisa… assim como… bem, tenho de apresentar a pessoa: João… Grilo. Isso! Depois, ah, é pobre e os pais querem que ele case com uma mulher rica, claro… Bem, depois o costume, as jóias desaparecem, o rei oferece uma recompensa a quem descobrir as jóias… mas, para ser mais difícil, ele está fechado num quarto… Sim, assim é mais difícil para ele explicar o que aconteceu às jóias. Bom, depois… ele não quer ir, mas os pais convencem-no… tenho de inventar as razões… depois penso nisso… é que se não fica igual à história do José Rato… Então depois ele vai e não acreditam que ele possa descobrir por ser pobre. Na primeira noite ele… bem, aqui vai ser igual, mas em vez de guardas vão ser criados, simples, da cozinha ou assim… pronto, já está diferente… Quando acharem que estão descobertos os guard…, os criados, não me posso descuidar!, confessam, assim como palermas, com muito teatro, e João Grilo não os denuncia, só descobre, como se adivinhasse… Caramba, isto até está a ficar bom, melhor do que o original! Até vão dar pulos de alegria… Bem, agora, ele pode casar com a princesa e pronto, acaba… Sim… Ah, sim tudo se passa num reino distante há muito tempo atrás, claro…
E assim, enquanto não chegava a família, enquanto chegavam, conversavam e comiam, João pensava em pormenores que criassem uma história diferente e nunca antes ouvida, mas que fosse aceite pelos filhos e talvez fosse contada aos seus netos e às pessoas da aldeia. Quando todos se calaram, já reunidos à volta da lareira, João soube que era a altura do conto. As crianças não lho pediram, rogaram-lho com os olhos, quase cruelmente, como se duvidassem de que fosse possível o que o pai lhes prometera. João pigarreou para aclarar a voz e começou.
Enquanto ia contando a atenção ia sendo atraída para si que, de costas voltadas para o lume, adquiria um contorno esbatido, ocultando-lhe as expressões involuntárias da face que exprimia, por vezes, dúvida ou atrapalhação, o que nunca se reflectiu na sua voz. Mas os miúdos eram já peritos nestas histórias e não lhes escapou que era uma distorção do José Rato e as perguntas desarmaram-no:
- Oh pai, isso parece a história do José Rato! Porque é que esse se chama João Grilo?
- Sim, e porque casou com a princesa assim sem mais nem menos?
João corou, mas ninguém notou, já que estava perto da lareira que lhe ruborizava as faces, ainda obscurecidas pela sua sombra e pela falta de luz na cozinha.
- Ah… - começou, sem saber como avançar, mas de repente surgiram ideias vindas não sabe de onde e disse: - Bem, há quem diga que ele não chegou a casar com a princesa, porque ela tinha nojo dele. Ele teve pena dela e então pediu ao rei muito dinheiro e foi-se embora… mas… - e aqui a atenção já estava outra vez captada e foi-se adensando, porque nunca tinham ouvido nada assim – ao sair, o rei perguntou-lhe o que tinha na sua mão, e que se adivinhasse lhe daria mais ouro e terras. O João, atrapalhado, só disse «Ai Grilo, Grilo, em que mãos estás metido!» e o rei «Adivinhaste! Adivinhaste!», e deu-lhe mais dinheiro e daí vem o nome… Não querendo abusar da sorte, foi-se mesmo embora, para junto dos pais.
Os miúdos ficaram meio duvidosos, mas era uma história diferente, e o ambiente e a voz do pai dissiparam as dúvidas, ajudados já pelo sono. Todos se recolheram e João ficou e João ficou sozinho na cozinha, observando o lume, achando graça ao facto de nunca ter reparado que as chamas são azuis no fundo, só depois ficam amarelas e laranjas. Sorriu-se, satisfeito por cumprir a sua palavra. De repente, quando o sono parecia começar a dominá-lo, uma língua de fogo elevou-se da lenha e disse:
- Hoje criaste uma nova história nova, renunciando aos avisos. Ela há-de circular por muitas terras, há-de ser contada por muitos anos, todos a ouvirão, com algumas diferenças, como é natural. Quanto a ti, e porque estas histórias nunca têm autor, não terás outro fim se não este.
E perante o olhar assombrado de João, línguas de fogo saíram da lareira e circundaram-no e lamberam o seu poder criativo de Homem.

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