quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Catorze Poemas de Amor



Na lírica portuguesa, desde o seu início até aos nossos dias, o amor tem sido tema de inúmeros poemas: os sentimentos por ele provocados, contradições, tentativas na sua definição, benefícios e malefícios, o cortejo do objecto amado, a recordação dos bons momentos passados, o sonho de um futuro juntos…, enfim, um sem-número de ambivalências e diferentes vertentes de encarar um sentimento que tem feito história literária, artística, cultural e social.
Devido a esta riqueza tão grande que representa o amor na lírica portuguesa, que vem já desde os trovadores provençais e da poesia palaciana de quinhentos, esta pequeníssima antologia, que seleccionou apenas catorze poemas, devido ao dia em que se celebra o dia dos namorados, seleccionou poemas apenas de poetas portugueses.
Sem ter qualquer grande pretensão, a antologia serve apenas para marcar um dia especial, muito especial, porque é o primeiro dia em que realmente estou englobado…
A antologia começa com um poema famosíssimo de João Ruiz de Castell-Branco, poeta de quinhentos da corte portuguesa, que num raro momento de originalidade criou aquele que é apontado como o melhor poema escrito dentro da estética cancioneiril e cortês. Reflecte o amor impossível, que é tão caro na poesia portuguesa, porque a sua senhora parte e o sujeito poético fica triste, doente, desejando a morte, mas tudo visto, sentido e interpretado através dos olhos.
Luís de Camões não poderia faltar numa antologia sobre o amor! Ele cantou-o de forma veemente, magistralmente. Em muitos dos seus textos vive polarizações entre o amor espiritual e o amor carnal, mas também entre um amor que salva e um amor que perde o ser humano, que lhe tira a sua dignidade e a liberdade. Em outros tenta definir o amor. O soneto escolhido por mim para ti vive dos efeitos provocados no sujeito poético, efeitos esses por vezes contraditórios, apenas por ter visto uma senhora, a senhora que ocupa já o seu coração.
António ferreira, se bem que não se dedicou com muita frequência ao tema do amor, é aqui apresentado com um dos seus sonetos mais belos e conhecidos. Pensa-se que será um soneto em louvor da sua mulher, após a sua morte prematura.
Até Almeida Garrett foram muitos poemas que se debruçaram sobre o tema, não se pense que houve um obscurecimento de duzentos anos, trata-se até de um período muito rico em composições barroquizantes e neoclassizantes que tratam o tema, mas como a antologia é limitada, acabaram por ficar de fora… De Almeida Garrett, introdutor do Romantismo em Portugal, escolhi A Estrella, do livro Flores Sem Fruto, por ser um poema extremamente belo, retirado de um livro menos conhecido que Folhas Caídas. Aqui a estrela é também um ser amado pelo sujeito poético que só é visto por ele, e ainda bem, senão poderia ser cobiçado por outros.
Interrogação, incluído em Clepsidra, é um exemplo muito belo da poesia amorosa em Camilo Pessanha. Talvez um dos mais belos desta antologia, retrata mais uma vez os sentimentos provocados por alguma coisa que o sujeito não tem bem a certeza se se trata de amor ou não.
Miguel Torga não tratou também muito o tema do amor, mas tem alguns poemas muito bem conseguidos a este nível. Este, aparentemente simples, como já é comum nos seus textos, parece ser um conselho para quem ama…
Jorge de Sena foi sem dúvida, uma das mais importantes figuras da cultura e literatura portuguesas no século XX. Além disso, a sua presença nesta antologia justifica-se por um poema, representativo de muitos outros, em que o mar está fortemente presente (na nossa poesia há uma grande tradição da presença do mar). Sugere um amor que leva até à confusão da identidade das duas parcelas do acto amoroso (ver última estrofe). O mar está também presente no poema escolhido de David Mourão-Ferreira, que retrata um amor difícil de concretizar.
Sophia de Mello Breyner Andresen, de forma elíptica e breve, num poema que pode ter várias linhas de interpretação, poderá retratar um amor em que o sujeito amado está ausente, mas o próprio vazio faz lembrar o sujeito poético do seu rosto, da sua perfeição… É apenas um dos muitos poemas de Sophia sobre amor, todos eles de uma beleza indescritível.
A antologia segue com um poema de Eugénio de Andrade onde se vê um sujeito criador, justificando a sua criação apenas por um ser. Possibilitando várias leituras, também a do amor poderá ser apreendida do poema.
Mário Cesariny aborda o tema da procura, do encontro e desencontro com o objecto do seu amor… Nuno Júdice aborda o amor acabado, que é recordado… Francisco José Viegas, no poema escolhido, fala de outra perspectiva, a de um amor vivido a dois, vivido já no mesmo espaço
Já António Ramos Rosa mostra-nos um amor mais universal, que não pode ser contido já no seu coração.
E agora, resta apenas ler os poemas e quem sabe, viver algum deles…

Catorze de Fevereiro de 2004
*
João Ruiz de Castell-Branco
(tempo de D. João II)

Cãtygua sua partindosse

Senhora partem tam tristes
meus olhos por vos meu bem
que nunca tam tristes vistes
outros nunhũs por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos.
tam doentes da partida,
tam cansados, tam chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tam tristes os tristes,
tam fora d’esperar bem,
quen nunca tam tristes vistes
outros nunhũs por ninguém.

*

Luís de Camões
(?1524-1580)

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio,
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto:
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvairo, agora acerto.

Estando em terra, chego ao céu voando;
Nũa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar ũa hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei, porém suspeito
Que só porque vos vi, minha senhora.

*

António Ferreira
(1528-1569)

Ó alma pura, enquanto cá vivias
alma lá onde vives já mais pura,
porque me desprezaste? Quem tão dura
te tornou ao amor que devias?

Isto era o que mil vezes prometias,
em que minh’alma estava tão segura;
que ambos juntos ũa hora desta escura
noite nos soberia aos claros dias?

Como em tão triste cárcer me deixaste?
Como pude eu sem mim deixar partir-te?
Como vive este corpo sem sua alma?

Ah, que o caminho tu bem mo mostraste
por que correste à gloriosa palma!
Triste de quem não mereceu seguir-te.

*

Almeida Garrett
(1799-1854)

A Estrella


Há uma estrella no céu
Que ninguém vê senão eu:
Inda bem! – que a não vê mais ninguem.

Como as outras que não reluz;
Mas dá tam serena luz,
Que, inda bem! – não vê mais ninguem.

No cantinho azul do céu
Onde ella está, não digo eu
A ninguém! – sei-o eu só: inda bem.

*

Camilo Pessanha
(1867-1926)

Interrogação

Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do Cântico dos Cânticos.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno…
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de Inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo…
Eu não sei que mudança a minha alma pressente…
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.

*

Miguel Torga
(1907-1995)

Cântico de Amor

Ama quem amas, como o vento
Ama as folhas do olmo
(Amor que lhes transmite movimento
E alegria.)
Asa que possa andar no firmamento,
Só caminha no chão por cobardia.

*

Jorge de Sena
(1919-1978)

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousada em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minhas mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

*

Sophia de Mello Breyner Andresen
(1919-)

O vazio desenhava desde sempre

O vazio desenhava desde sempre a forma do teu rosto
Todas as coisas serviram para nos ensinar
A ardente perfeição da tua ausência

*

Eugénio de Andrade
(1923-)

Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei às romãs a cor do lume.

Foi para ti que pus no céu a lua
e o verde mais verde nos pinhais.
Foi para ti que deitei no chão
um corpo aberto como os animais.

*

Mário Cesariny
(1923-)

Poema

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

*

António Ramos Rosa
(1924-)

Não posso adiar o amor

Não posso adiar o amor
para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque
na garganta
ainda que o ódio estale
a crepite e arda
sol montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas.

Não, não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese
séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore,
não posso adiar para
outro século minha
vida
nem o meu amor
nem o meu grito de
libertação
Não posso adiar o coração

*

David Mourão-Ferreira
(1927-1996)

Soneto do amor difícil

A praia abandonada recomeça,
logo que o mar se vai, a desejá-lo:
é como o nosso mor, somente embalo
enquanto não é mais que uma promessa...

Mas se na praia a onda se espedaça,
há logo a nostalgia duma flor
que ali devia estar para compor
a vaga em seu rumor de fim de raça.

Bruscos e doloridos, refulgimos
no silêncio de morte que nos tolhe,
como entre o mar e a praia um longo molhe
de súbito surgido à flor dos limos.

E deste amor difícil só nasceu
Desencanto na curva do teu céu.

*

Nuno Júdice
(1949-)

Um amor

Aproximei-me de ti; e tu, pegando-me na mão,
puxaste-me para os teus olhos
transparentes como o fundo do mar para os afogados. Depois, na rua,
ainda apanhámos o crepúsculo.
As luzes acendiam-se nos autocarros; um ar
diferente inundava a cidade. Sentei-me
nos degraus do cais, em silêncio.
Lembro-me do som dos teus passos,
uma respiração apressada, ou um princípio de lágrimas,
e a tua figura luminosa atravessando a praça
até desaparecer. Ainda ali fiquei algum tempo, isto é,
o tempo suficiente para me aperceber de que, sem estares ali,
continuavas ao meu lado. E ainda hoje me acompanha
essa doente sensação que
me deixaste como amada
recordação.

*

Francisco José Viegas
(1962-)

De novo o amor

Aí navegam os teus braços, atravessam-me de um lado
ao outro, e do outro lado do mundo uma árvore estará
erguida para me acolher no seu verde ramo. É um pássaro

erguido à altura dos teus dedos, quando brincam
dentro de mim e me perfuram o coração: e quando me rio
tu falas do perfume pegado à camisola e dos lenços

espalhados na mesa. Quando esse pássaro vier trazer-te
a manhã, não abras a porta, é apenas um voo inquieto.
*
(Nota: se fosse feita a antologia hoje, os poemas seriam bem outros...)

2 comentários:

Milai disse...

se tivesse tempo e cabeça, criava a minha lista dos meu 14...porque esta deixa muito a desejar...este dia nao deveria ser festejado, mas sim reflectido..talvez esteja mais inclinada para Camões...convém dizer que o amor por muito bom que pareça traz sempre o seu lado negativo..e a questão é se devemos querer amar...1000ai

tulisses disse...

obrigadinho, ta?...