sexta-feira, outubro 14, 2005

Eva - conto

EVA

“Solidão de sozinho”
José Luandino Vieira, João Vêncio: os seus amores


Era de certeza uma árvore nova, nunca antes vista por ali. Folhas vermelhas, flores azuis. Que coisa do Diabo era aquela, nascida em ano de incertezas e estranhidades?
Era no jardim que a árvore estava. No jardim daquela mulher ainda nova, acabada de chegar, há quase um ano, à vila. Todos a adoravam por ser tão bela, tão gentil e tão generosa. Era uma abelha cheia de mel, diziam as mais novas da vila, que aprendiam com ela formas de fazer o enxoval mais perfeito – seus pontos diferentes, seus motivos inspirados e suas cores alegres e vivas nos bordados. Era uma mulher prendada, diriam; uma mulher primeira, orientadora das segundas, diria eu.
Era a Eva.
Eva gostava de neve, de flores na Primavera, do vento no fim do dia, do sol nas tardes passadas no jardim – comungava da Natureza-ela-toda, menos da chuva. A chuva era a tristeza mais triste, fazia uma pessoa sentir-se só de sozinha; nem consigo queria ficar. E dormia.
Ao fim desse recente ano de ensinanças e amizades, choveu muito. Era um ano de grossas gotas caindo sem fim, sem pausa, sem qualquer dormência ou preguiça. Eva dormia, bebia chá, andava pela casa, livro atrás de si, só. A chuva era tanta que as moças não se atreviam a percorrer o caminho para a sua casa, e mesmo que o fizessem, Eva não era a mesma para elas, porque nos seus olhos fundos azuis-esverdeados só se lia solidão… Mulher só em casa quando chove é como macaco fora do seu galho ou galinha sem grão para encher o papo. Mais valia só que a chover a potes, pensava ela. Mas isso era errado: se não chovesse, ela não estaria nunca só. Assim, a chover, não só estava só sem outros, como estava sozinha sem si.
O estar sozinha sempre suscitou sururu entre as pessoas da vila. As mais novas sabiam que ela era viúva (e todos na vila ficaram logo a saber também), daquelas viúvas de amores impossíveis e estranhos – o marido, morto, ficara perdido em Espanha, numa luta de políticos e gentes, que o apanhou desprevenido e o tornou mais um agredido-desaparecido. Morreu, lhe disseram. Mas ela nunca teve certezas claras, mas o escuro ensombrou seu destino. Por isso ela aceita a solidão de si em si, às vezes sem si, como se nada tivesse mais a esperar, a não ser que os dias de chuva passassem, porque foi num dia de chuva que Eva recebeu a notícia – “Morreu”.
Em sua casa as flores murcharam e não foram substituídas – jardim abandonado, as árvores cá fora ficaram sem flores e sem frutos. O piano foi fechado e vendido. O tempo andou e curou aos poucos a dor de uma perda por desaparecimento, sem corpo presente que confirmasse uma solidão eterna. E depois desapareceram as galinhas e os porcos, e até os cães e os gatos de raças ancestrais; as comidas luxuosas e arranjadas a preceito. Numa situação económica insustentável tudo se vende. Decide, Eva, fugir da sua terra – cortar o cordão umbilical por vezes é o melhor a ser feito. Fugir a todos que tentavam, de todas as maneiras, consolá-la da perda, perdendo-a com o desbaratamento dos seus bens, parcos já por falta de trabalho – não se tratava de mais nada. Cortara raízes e fora para sítio secreto, pequeno, onde não poderia ser encontrada facilmente por pretendentes e famílias que a quisessem (ou às suas parcas finanças que ainda poderiam fazer a felicidade de algumas pessoas).
Sim, pretendentes, porque Eva era nova, mulher que se procurava ainda para casar. Mas ela fechara-se em si e procurava apenas a sua sozinhidade, só quebrada, por vezes, pelas segundas, a que ensinava as suas coisas aprendidas antes, na sua meninice. Fugiu a pretendentes. Nova Penélope? Nem tanto, enquanto que Penélope nunca perdeu a esperança da vida de Ulisses – e da sua vinda, Eva não acreditava mais no regresso, porque também não acreditava na vida – acrente.
E nesse ano choveu tanto, tanto, tanto que nasceram culturas esquisitas. Num campo onde se plantaram feijões, nasceram os ditos cujos, mas também favas. No meio das cebolas nasceram batatas, no meio das batatas nasceram abóboras. Coisas não plantadas nesse ano surgiram, tal foi a saciedade dos campos férteis, abundantes de húmus. Campos revolvidos que deslocaram culturas de um lado para outro, tudo misturado e alterado, quase uma salada do mais natural possível.
E nasceram outras coisas, espécie de cruzamentos indisciplinados que levaram a novas coisas: morangamoras, peçãs, pessigos e tantas outras estranhezas que pareciam estrangeiras, como os frutos tropicais, aproveitadas logo para fazer saladas de frutas muito curiosas. E isto porque, culturas houve, que nasceram fora do tempo normal ou esperado.
Depois de toda aquela estranhitude frutífera, nasceu aquela estranhidade floral: uma árvore de folhas vermelhas e de flores azuis. Explicações não as havia, como as havia para as misturas de frutas. Dizia-se, primeiro, certezas nunca serão certas, que a árvore nascera das lágrimas de Eva, as folhas vermelhas do sangue derramado do seu marido, as flores azuis dos seus olhos sozinhos, porque o verde da esperança já secara. Um jovem cá da vila, que anda a estudar na cidade, explicou-nos que era coisa que podia acontecer, que as ciências podiam explicar, que era uma mistura de coisas que não percebi muito bem… Mas o povo também não percebeu e não se deixou convencer, foi juntando dois mais dois e deu a soma: tudo o que de estranho nascera só tinha aparecido depois da chegada de Eva! De filha do amor e saudade de Eva pelo marido, a nova árvore passou a ser vista como um qualquer tipo de manifestação do Diabo…
Já o Sol vigorava nas ruas da vila, mas, as moças, proibidas, já não visitavam Eva para aprender coisas úteis no lar. Eva consumia os seus dias entre as tardes no jardim ao sol, com um livro atrás de si. À noite bebia chá, dormia, ou olhava a arvora estranha. Assim, sem chuva, a solidão de Eva via-se melhor, iluminada e límpida, sozinha sem si.
Há quem diga, eu não vi nem sei, que um dia nasceu uma maçã preta na árvore, e Eva, como a outra, a das escrituras, comeu-a, sentiu-se nua e desapareceu da vila. O certo é que nada se encontrou em sua casa e a árvore foi cortada, apesar de me parecer que ela está a rebentar, de novo…

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