domingo, setembro 07, 2008

Fragmentos de contos do Vazio Repetido

Já há muito tempo que ponho aqui nenhum conto. Ou porque são muito grandes para um blogue ou porque não são assim tão grande coisa... Mas tenho cumprido religiosamente o meu compromisso de escrever um conto por semana (bom, às vezes atraso-me outras adianto-me, como agora, que tenho dois a mais;) o que é muito bom). Mas agora deu-me para pôr aqui uns fragmentos de alguns, só porque sim.


II. 21. A consistência dos sonhos
:
«Pegou na carteirinha amarela que dizia: «Um dia paro de esperar. Hoje é o dia». Despediu-se até ao dia seguinte e desceu a escadaria ladeada de estátuas. Não tomou o café. Correu para o autocarro que ali vinha e que esperou um pouco por ele. Tinha decidido, entretanto, que não esperava mais. Os sonhos não se compadecem de quem só espera. Há quem alcance, há quem desespere, há quem procure. E entrou, agradecendo ao condutor, enquanto a chuva recrudescia e o palácio ia ficando para trás.»


II. 24. O dia que não amanheceu:
«Tentei pegar no telemóvel para telefonar à Maria, para ver se ela me acordava com o telemóvel, mas não consegui, porque entretanto estava a ligar de olhos fechados e foi para outro número. Não sei se desliguei, se cheguei mesmo a marcar… Tentei berrar, porque ganhei a consciência de que mais alguém estava em casa. Era a Sandra, que estava a dormir no outro quarto. Ao berrar, acordei, e ouvi a Sandra dizer, Rápido, saiam todos que ele está a acordar. Olhei para o corredor e vi umas vinte pessoas saírem pela janela do quarto, para que eu não desse conta.»


II. 26. Teias de aranha:
«Entretanto, o senhor Eugénio foi-me chamando muitas vezes, não para o ver sobre questões de saúde, mas para me mostrar outras invenções em que se entretinha. Em poucos anos mostrou-me um conjunto admirável de descobertas próprias que ele mostrava inicialmente com orgulho, depois com relutância, depois com desespero. É que ao longo do tempo que me foi mostrando as suas invenções, eu fui-lhe explicando que aquelas coisas já existiam, inventadas por outros, antes, e que muita gente as tinha em casa, a seu uso diário. Desfilaram então pelos meus olhos a torradeira, que ele apresentava como a máquina de aquecer deliciosamente o pão, obrigando-me a provar uma fatia torrada lá com manteiga, e que nada tinha de excepcional em relação ao excepcional sabor do pão torrado na mais corriqueira torradeira; a campainha para pessoas que eram enterradas vivas por engano, que felizmente não me fez experimentar, respeitando a minha claustrofobia; um modo de gravar vozes em fitas que quase todo o mundo conhecia como cassetes mas que para o senhor Eugénio era novidade sua, exclusiva e radical. Aconselhei-o então, ao ver o seu desânimo, mas também o seu talento como inventor de diversas coisas, de diversos domínios, a deixar a sua casa torre de marfim onde se fechava, e a percorrer o mundo para ver o que já existia e o que ainda faltava. E assim partiu uns dias depois.»


II. 28. Sinais/Signos:
«Os funerais aqui ainda são antecedidos pelos sinais, toques específicos do sino da igreja. Durante muito tempo, sempre que tocavam os sinais, uma grande parte das pessoas da aldeia pensavam «Lá foi o António, coitado. Deus o tenha na Sua glória.». Mas não, o António continuava a resistir à doença que o roía por dentro há anos, contra todas as expectativas dos médicos. De tal maneira era assim que, a dada altura, o próprio António pensava que chegara a sua vez quando ouvia os sinais, sem se aperceber que ainda estava vivo e que se fosse por causa dele que tocavam os sinais ele não saberia, pois não os ouviria. Ou antes, era assim que eu pensava. Mas entretanto descobriu que as coisas são bem diferentes quando morreu e ouviu os sinais e soube que eram sobre si. E ouviu os pensamentos das pessoas que foram ao seu funeral.»


II. 30. O suave milagre de Tormes:
«Ninguém tem dificuldade em encontrar, pelo menos, o espaço bíblico no conto, as referências, enfim, toda uma construção a partir de Renan e della Gatina, também presente em «A Morte de Jesus» e em A Relíquia. Mas enfim, encontrar o tom bíblico na linguagem e sua instrumentalização, como ele dizia, era um pouco mais… forçado. Mas ele lá foi demonstrando a sua ideia. Acredite, levou provas a que chamou irrefutáveis de que Eça plagiara manuscritos meio secretos, meio perdidos, que teria adquirido, talvez, na sua ida à Terra Santa, ao Egipto e afins, aquando da inauguração do canal do Suez. Era uma tese ridícula, na minha opinião. Ele explorou-a muito, perante a minha incredulidade e indiferença dos restantes cursantes, cheios de sono àquelas horas da tarde de calor após refastelado almoço. Depois, não satisfeito, comparou com «A Perfeição», claramente, obviamente – diria eu – feita a partir de A Odisseia do bom velho e sonolento Homero, mas muito diferente dela. E quem faz uma assim, faz mais. Então, «O Suave Milagre», em todas as suas versões, não era mais do que isto: uma tradução, mais ou menos literal a que se seguiram as adaptações mais ao estilo do autor. Estava lá tudo, segundo ele. Só lhe faltava encontrar o manuscrito que Eça usara.»


II. 34. Para além das amoras:
«Mas C. era perspicaz e era de facto superior a todos naquela casa. A sua formação em literatura e as leituras que fez por dedicação e por prazer tinham-lhe dado uma enciclopédia interior que fazia com que soubesse portar-se em todas as situações, observando e vivendo ao mesmo tempo, antecipando sem esquecer, lembrando sem deixar de adivinhar as reacções. E depois havia o seu ar estudadamente indiferente que com o tempo se tornou natural em si, sem esforço. Pensava muitas vezes que aquilo que somos é fruto de coisas que fazemos uma, duas, três - as vezes suficientes para que se tornem rotina, e por isso, sem esforço, sem pensamento envolvido. Duvidava por isso de quem era realmente, do que era, do quanto haveria em si de construção que ela não deveria ter escolhido para si, pensando no entanto que era impossível saber que construções eram as indicadas ou não, todas elas passíveis de ser totalmente mudadas na sua construção… bastava, por exemplo, ela ter escolhido um curso diferente, ou em vez de se deixar maravilhar pelos livros se tivesse entusiasmado por bordados e vestidos – ou só por isto, como a maior parte das amigas que lhe queriam imputar, filhas de famílias de amigas de bem, vizinhas ou não, que vinham sempre às festas que a família teimava em organizar com alguma frequência e cuja organização, desta vez, deixaram para C., que já tinha idade para isso…»


II. 35. Fragmentos do funeral:
(do fragmento 11) «O amigo admirou-se, primeiro pela fraqueza que tomara o exilado em relacionar-se novamente com o outro, depois pela força em fazer o que fez, no meio do acto sexual. Admirou-o mais por isso e pelas palavras que ele sabia que eram sérias e que funcionariam para o exilado, embora nunca pudesse ser assim com ele.
- Fiz hoje o funeral dele.
Estas cinco palavras simples, talvez todas menos «funeral», ressoaram nos ouvidos de ambos como um acto real e consumado. E estava: era a tal palavra ontológica em que ele tanto acreditava e que por isso mesmo funcionava para ele. Naquela tarde o exilado fizera o funeral mental, sentimental do não exilado. Para sempre. Imaginou todos os passos de um funeral real, mas em que quem ia a enterrar era o seu sentimento pelo outro no mais recôndito de si. Nos dias seguintes andava pela casa como se nada tivesse acontecido.»


Bem, depois dos excertos todos isto ficou muito grande... se calhar era melhor um conto inteiro, mas ficam aqui estas pérolas da minha mente literária fértil... E parece-me que vou já escrever o conto número 38...

8 comentários:

SP disse...

Este post não merece ter 0 comentários...

Um abraço... peludo!

Anónimo disse...

Houve um minuto de silêncio em respeito a ela semana passada no SIMELP.
Lady Ana Luisa e eu passeamos muito, pude conhecê-la melhor, é de facto um ser humano extraordinário, ai,agora eu é que estou apaixonada por ela (no bom sentido, claro)
Oh! Agora já sei por que andaste sumido, é que estavas compilando os contos da futura obra vencedora do Nobel da Literatura. Gostava muito (se não for incômodo, é claro) de ler por inteiro os contos A Consistência dos Sonhos, Para Além das Amoras e Fragmentos do Funeral. Instigaram minha frágil atenção, já sabes que sou muito dispersiva. beijinhos, Carol

Anónimo disse...

PS Ela = Luciana Stegagno Picchio

tulisses disse...

obrigado, SP. Os meus comentadores mais habituais andam desaparecidos, assim como eu... abraço

Cara Carol, este post não deu trabalho nenhum... o que me tem ocupado é o colégio e as questões do mestrado... enfim, isto vai rebentar por algum lado, digo eu...
Ah ah, estás a ver como eu tenho razão quanto às pessoas! Eu sabia que ela é uma deusa! Depois envio-te os contos que me pediste. bjs

Anónimo disse...

Bem, tb eu sou pós graduanda e prfa, bem sei como é estar com as coisas , como dizemos por aqui, "para ontem"
Os escritos de meu talentoso amigo parecem ser o desenrolar de idéias e impressóes proprias de um raciocíonio bastente refinado e, em alguns casos, algo corrosivo. O logotipo que me vem a mente é o do Brut Barroco - maravillosamente complejo.
Carolina Morales

tulisses disse...

bem, eu ainda não cheguei ao "para ontem", tenho tudo direito e adiantado, até, pelo menos aqui no colégio. "talentoso amigo" parece-me bem ;) mas "raciocínio refinado" e "corrosivo" se calhar é exagerado, não? Embora tenhas escolhido os contos que se calhar mais o são, tirando um ou outro que ainda não conheces ;). Quanto ao Brut Barroco - considero-me um ignorante nisso, mas eu não sou complexo, amiga - mais simples do que eu não pode existir - para quem me entender ;).
bjs

Anónimo disse...

Sorry pelo atraso da tréplica....Much ado to care about
Hummm, está bem, pode ser um pouco de exagero ou excesso de drama, quem sabe...
Um último comentário e derradeiro elogio 1)Brut Barroco= vinho tinto espanhol, marcado pela consistência e diversidade de aromas e sabores;
2) Eu compraria o teu livro ; )
ABÇ Carol

tulisses disse...

ah, vinho! pois, eu disso pouco percebo, como sabes. nem bebo. apesar de ser da terra do melhor vinho do mundo ;) Mas parece-me bem.

obrigado, não terás de o comprar, eu ofereço;)

bjs