quarta-feira, agosto 12, 2009

excertos de «O mundo não passa de mundo» - 2.ª parte

Porque o projecto está adiantado, milagrosamente, porque esteve atrasado - e muito, e antes ainda do conto mais exigente, título homónimo do conjunto todo, pausa para seleccionar pequenos momentos de alguns contos.


III. 27. Endymion

Percebes agora porque digo que hoje, ao ver esta lua extraordinária, algures na Grécia, deve estar um rapaz que dorme de olhos abertos, fitando-a e sonhando-a? E quem diz Grécia diz aqui, neste momento, em que estamos sozinhos frente a frente e o mundo pode ser só nosso, por agora, sem inveja dos deuses… Vamos juntos envelhecer mais ao longe?


III. 30. O gato a tinta-da-china

O seu autor reparou em tudo isto e achou que era um bom desenho, um entre muitos que tinha feito, guardado, vendido, ou à espera de comprador. Foi o caso deste. Cansado de tantos desenhos, de tantos traços a preto sobre o branco, não entendeu a maravilha que era aquele gato e a sua vontade de um afago. Não reparou, cheio de sono, que o gato mudava de posição, rebolando-se no espaço mínimo branco da página, quase com perigo de vida pelas margens abruptas da folha para o abismo. E ao ver-se ignorado, não tentou outras abordagens: talvez pudesse ter miado ou arranhado o papel, mas deixou-se ficar, ferido no seu orgulho de gato e tornou-se indiferente.


III. 33. História de uma viagem indecisa

A minha atenção era a mesma da do sol: brincava com os ramos das árvores, penetrando nas frinchas que elas deixavam. E eu seguia esses raios como uma escapatória para as palavras pausadas do meu interlocutor, tão diferentes de outras («O que foi?», «Caiu-me alguma coisa na cabeça vinda da árvore… ou das tuas mãos», o meu sorriso confirmou a segunda hipótese).


III. 34. A missiva inexistente de Antínoos

Não te prendas às memórias, Adriano, que tiveres de nós. Mas não te esqueças, também. Tudo em perfeita harmonia, na devida proporção. Eu recordar-te-ei enquanto o tempo permitir a memória. Afinal somos mortais, dependentes dele, sempre. Não sei o que se erguerá para mim dentro destas águas, depois de me perder nelas, mas só poderá ser o prémio de uma vida breve, mas certa, desde que me escolheste para teu lado. Oh, Adriano, eu também te escolho, escolho-te para que continues, para que continuemos juntos no resto do tempo que existe, em que será possível sermos entendidos, como agora eu mesmo nos entendo e imploro que me entendas. Não me lamentes, é de livre vontade que sigo a vontade dos deuses. E só a eles pertence a nossa vida. Somos mortais, mesmo que me deifiques, mesmo que sejas o imperador, e todos os mortais morrem, tal como os deuses parecem não escapar, também… Mesmo que dês o meu nome que te é tão querido e que murmuras nas noites de calor de Roma como se ele te matasse a sede, a uma estrela, por influência do teu avô Marulino, de uma constelação boreal, ela será variável, com um período que durará sete dias, quatro horas e catorze minutos, como se mostrasse que eu pouco mais durei que ela, mas que retorno, de cada vez que alguém pronuncia o meu nome, o nosso amor.


III. 35. O apanhador de conchas

Por fim, sentei-me na areia, em frente ao mar, como se lhe dissesse adeus. Ao longe deveriam estar os meus colegas, em tarefas de bom acolhimento, imaginei depois. Disseram-lhe por onde eu estaria, indicaram-lhe o caminho e encontrou-me. Eu estava a olhar o mar onde lavava algumas conchas que traziam algas com elas. E soube, de repente, que estava ali, por alguma razão que desconhecia. Não era promessa de que nos viria ver. Não era o seu perfume, porque o mar dominava tudo, nem os seus passos, porque o mar abafava-os e a areia não os permite iguais ao costume, nem a sua voz, porque não falou. Ou antes, quem falou primeiro fui eu, talvez querendo surpreender e provocar:

4 comentários:

Carol M. disse...

OLá!! Humm, que bom que estás adiantado. Quero um exemplar autografado um dia (preferencialmente, antes da virada da década)
Mas por que quase tudo o que escreves é em primeira pessoa?Tendencioso, não?
Bjs
PS Não preciso mais dos God -damned books, a banca decidiu mudar as obras e eu de carreira. ABÇ

tulisses disse...

what? a sério? não é possível... tudo corre mal, então! Eu ia enviar-tos amanhã - estar na terrinha é assim... mas se calhar fico com eles para mim, ou para quando cá vieres ou eu aí for...

sim, muita primeira pessoa... sou mesmo egocêntrico... escapa o conto 30. mas há outros, muitos, que não são em primeira... A primeira pessoa permite, às vezes, revelar mais, ocultando. é mais fácil trabalhar em primeira pessoa ;)

beijos

carol M. disse...

Seríssimo, meu caro!! Dos 30 livros, só 5 conservaram-se. E o "melhor" é que ainda assim terei de fazer a prova, pois já paguei a taxa. Vou entregar a folha em branco!! Ou com algum comentário irônico pseudo-queirosiano...
Guarda-os para mim, por favor, em algum momento irei, com visto de turista obviamente, pois tal qual Dido em breve farei uma fogueira para queimar todos os meus diplomas, atestados, epecializações, etc. Se quiseres passar algumas férias cá espera até eu ser nomeada Oficial de Justiça - daí poderei dar ordem de prisão, vai ser o máximo!!
ABÇ

tulisses disse...

muito medo, tu oficial de justiça ;) mas queres dar-me ordem de prisão? a mim, um pobre anjinho!? :)

Ok, cá estará tudo à espera. Com ou sem Dido, ou Eneias ou o que for!

beijo