domingo, janeiro 09, 2011

Azul

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Quando sai, de manhã, ele fica a dormir. Ao fim da tarde, não é raro encontrá-lo a um canto do sofá, a cama ainda por fazer.
As janelas quase não são abertas. Há uma luz cheia de sombras, um odor saturado, uma acidez morna, de paredes que não respiram. Já não há quem a acompanhe a casa, quem a visite, quem ela convide. Pouco a pouco, até os telefonemas se fazem raros, secretos, como conspirações breves.
Com as amigas, mostrava-se de um indecoro insinuante, roçando a inconveniência. Com os amigos, tornava-se uma presença castradora, corpo de silêncio ou de insónia, subindo de debaixo do sofá ou da cama.
Por vezes, todas as estações, uma estação qualquer, ela regressa com um cheiro que ele não reconhece. Quando se despe, olha-a como se a não visse. A perseguição silenciosa dos passos, eis tudo o que acontece.
Enquanto ela se lava, toda a atenção dele se concentra no fascínio do jorro tombando, no nível da água subindo. Ele sabe: só depois ela lhe servirá o prato e lhe poderá tocar o pulso com a humidade do focinho.
(Num gato, diz-se azul a cor que em tudo o resto se diz cinzenta.)


Rute Mota, in Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, V. N. de Gaia: Exodus, 2008:132

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