a face breve
enuncia o esplendor
****
Coisas da tristeza
Uma palavra uma casa e esse rastro
ardendo lentamente a solidão
Oh quem pudesse ainda reconhecer
a doce mãe do soldado
nas dispersas sombras das vigias
Colhesse a rapariga lilases como outrora
as crianças demandassem os terraços
ao peregrino assomo do pastor
e o seu canto acordasse trémulas luzes
Mas o vento é um invasor impiedoso
destrona as divindades do bosque
****
Frésias
Frésias são flores com cheiro a chá
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos
(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa
tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)
nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas
o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos
(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa
tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)
nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas
o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia
****
Uma taça ática
Aos heróis pertenciam formas de veneração
talvez o aspecto do mundo antigo mais renegado
pelo nosso século extinto
Não seriam diferentes de nós:
temiam as estações severas
o idioma da névoa
o instante de vidro
onde a respiração se quebra
Mas a vida era para eles um sopro
que levavam sempre consigo
aurora incólume em expansão
Quando Orfeu cantou diante do Hades
as filhas de Danao interromperam a tarefa
Tântalo esqueceu fome e sede
Sísifo sentou-se sobre a pedra
e diz-se que até Caronte
por momentos abandonou
a nave onde nos leva
José Tolentino Mendonça, A Noite Abre Meus Olhos, Lisboa: Assíro & Alvim, 2006: 20, 50, 109, 232
Sem comentários:
Enviar um comentário