domingo, julho 03, 2011

4 poemas de José Tolentino Mendonça

Primavera

a face breve
enuncia o esplendor


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Coisas da tristeza

Uma palavra uma casa e esse rastro
ardendo lentamente a solidão
Oh quem pudesse ainda reconhecer
a doce mãe do soldado
nas dispersas sombras das vigias

Colhesse a rapariga lilases como outrora
as crianças demandassem os terraços
ao peregrino assomo do pastor
e o seu canto acordasse trémulas luzes

Mas o vento é um invasor impiedoso
destrona as divindades do bosque


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Frésias
 
Frésias são flores com cheiro a chá
e ela, aos trinta e sete anos, preferia-as
às flores que se vendem por aí
admitia a beleza mas não o esplendor
porque são tristes as repetições
num instante se tornam saberes
e ela, aos trinta e sete anos,
prezava apenas os segredos que mesmo ditos
permanecem como segredos

(em certas épocas, por alguma porta esquecida
escapava-se sonâmbula, para o pátio
que dá acesso à mata
e, por vezes, iam buscá-la
gritando o seu nome ou com a ajuda dos cães
já muito longe de casa

tinha por hábito acender fogueiras
de que, depois, se esquecia
e por isso também os aldeões
a temiam)

nunca compreendeu a natureza da vida doméstica
intensa e aflita criança
incapaz de certezas

o que de mais belo soube
sempre o disse, de repente,
a alguém que não conhecia

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Uma taça ática

Aos heróis pertenciam formas de veneração
talvez o aspecto do mundo antigo mais renegado
pelo nosso século extinto

Não seriam diferentes de nós:
temiam as estações severas
o idioma da névoa
o instante de vidro
onde a respiração se quebra

Mas a vida era para eles um sopro
que levavam sempre consigo
aurora incólume em expansão

Quando Orfeu cantou diante do Hades
as filhas de Danao interromperam a tarefa
Tântalo esqueceu fome e sede
Sísifo sentou-se sobre a pedra
e diz-se que até Caronte
por momentos abandonou
a nave onde nos leva


José Tolentino Mendonça, A Noite Abre Meus Olhos, Lisboa: Assíro & Alvim, 2006: 20, 50, 109, 232 

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