Natureza Morta com Chaminé
Vejo o fumo a sair pela chaminé e um pouco acima
as folhas da árvore tremulam. Ainda resistem,
as árvores têm um fôlego extraordinário. É o meu amigo
que vai subindo e eu aqui em baixo troco recordações avulsas
com dois rapazes do nosso tempo. Lá dentro há uma sala de espera
mas aqui também eu vou fumando a minha vida.
Em Auschwitz não havia sala de espera não havia cadeiras
para a família, nem árvores suficientes para soletrar a dor
nas suas folhas. O meu amigo vai saindo pela chaminé
e eu não sei se as nossas brigas ficam nas cinzas e onde são
guardados os afectos. Este ruído da pá que fere os ouvidos junta
tudo o que poderemos visitar num guarda-jóias para bijuteria.
A verdade que nos resta já vai alta. Só a árvore sabe nas folhas
a corporeidade da matéria que se evola. Aqui em baixo eu fumo.
Directo ao céu vai o corpo do meu amigo subindo pela chaminé.
***
Atrás dos Dias
Atravessas as ruas e o meu olhar anda
à volta do teu corpo e quando vais à escolapasso perto dos teus pés, das pernas nuas.
À tarde nos passeios apinhados de gente
não sei onde estou mas trago leite nas mãos
e o mel desce sobre a fome que pudesses ter
para que rias, a tua boca se transforme em trigo
e os teus olhos em luz. Brincas com um amigo,
eu arranco os pregos da madeira, amacio o chão
em que tropeças. Fazes os deveres, ensino
os números a obedecerem-te e a amares
as letras umas ao lado das outras, solidárias
como uma pequena vírgula para que o silêncio
receba a tua voz. Voo junto às tuas asas,
lubrifico-as e fico a ver como se suavizam
os traços do teu rosto. Agora vais partir.
Irei um pouco atrás com a cor da tarde
para não ser vista. Por mais que vás
estarei de mansinho atrás das asas. Ser mãe
é ir assim. É assim que vou à fonte.
****
Desmantelar Certezas
Agora é difícil mentir, acreditar
que as palavras possam não arder.Foram demasiados incêndios
que passaram de século a século.
Vê como se assemelham os seus rostos,
o rasto de fuligem que os desfigura
é um cometa fugidio, mas nós sabemos
que algumas palavras passaram através do fogo,
mais magras do que os corpos, mais dúplices,
cheias de sentidos cobrindo mil cores
e mais mil ainda por abrir. Quantas vezes
a serva escolheu a quem servir?
E no chão sempre o mesmo sangue,
sempre os mesmos olhos a desmantelar
certezas. Já não podemos acreditar
que as palavras não desfiguram corpos,
não ateiam. É tarde e as palavras que nos vestem
estão cansadas. É tarde desde Abel,
desde o paraíso. E neste fim de tarde
alguém, em qualquer parte, escreve uma palavra
que ainda não foi escrita, uma palavra leve
ferindo os temporais e embora seja tarde
é também cedo e o amanhã começa
com esta palavra a caminho do seu pó.
Rosa Alice Branco, Da Alma e dos Espíritos Animais, Porto: Campo das Letras, 2001: p.
26, 49, 80.
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