sábado, dezembro 01, 2012

Poemas de José Saramago

 
 
Processo
 
As palavras mais simples, mais comuns,
As de trazer por caqsa e dar de troco,
Em língua doutro mundo se convertem:
Basta que, de sol, os olhos do poeta,
Rasando, as iluminem.
 
**
 
Epitáfio para Luís de Camões
 
Que sabemos de ti, se versos só deixaste,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?
 
***
 
As palavras são novas: nascem quando
No ar as projectamos em cristais
De macias ou duras ressonâncias.
 
Somos iguais aos deuses, inventando
Na solidão do mundo estes sinais
Como pontes que arcam as distâncias.
 
****
 
Fala do Velho do Restelo ao Astronauta
 
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
 
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
*****
 
Regra
 
Tão pouco damos quando apenas muito
De nós na cama ou na mesa pomos:
Há que dar sem medida, como o sol,
Imagem rigorosa do que somos.
 
 
Os Poemas Possíveis, Lisboa: Caminho, 2011 (1966)), p.23, 36, 58, 84, 122


Forja

Quero branco o poema, e ruivo ardente
O metal duro da rima fragorosa,
Quero o corpo suado, incandescente,
Na bigorna sonora e corajosa,
E que a obra saída desta forja
Seja simples e fresca como a rosa.

**

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
  manhãs e madrugadas em que não precisamos de
  morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
  em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
  palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
  mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
  vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
  sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
  mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
  ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
  como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

***

Caminhámos sobre as águas como os deuses
E fomos deuses
Todo o arco do céu as nossas mãos traçaram,
e os traços lá ficaram.
Olhamos hoje a obra, cansados arquitectos:
Não são os nossos tectos.

Provavelmente Alegria, Lisboa: Caminho, 1999 (1970), p.20, 52, 71

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