segunda-feira, outubro 17, 2005

carta a Alberto Caeiro (1.º trabalho de seminário)

Caro Alberto Caeiro,

Espero que a sua não-vida quase real lhe esteja a correr bem. E com isto apenas quero dizer que, apesar de toda a imaterialidade da sua existência, possa ainda andar pelos campos a ver a Natureza e conhecê-la pelo seu único lado: o de fora.
Escrevo-lhe porque preciso de dizer-lhe umas palavras de reconhecimento e, mais do que isso, de agradecimento.
Nascendo de um não-nascimento, é talvez a Pessoa que mais precisaria de ter nascido. E a sua morte de 1915, mais falsa que o seu nascimento inverdadeiro, foi uma perda irreparável para a poesia universal, que continua ainda a fazer-se de místicos que ouvem os rios terem êxtases ao luar, ou de formalistas que tentam descobrir duas árvores iguais, uma ao lado da outra, nem que para isso tenham de lhes cortar ramos, tirar alguns frutos ou tirar-lhes folhas.
Admiro-o, sobretudo, por essa visão de garça, de Atena atenta (que invejo e que às vezes finjo ter incorporada nas coisas que mal escrevo), tão patente na sua escrita. É uma escrita tão profundamente original que qualquer descuido se lhe perdoa logo. E não ligue aos comentários de um tal Fernando Pessoa, que acha que você escreve “mal o Português”. O que é o Português enquanto instrumento, quando a sua poesia é uma novidade tão fresca e saborosa? Uma língua com oitocentos anos, velha e carunchosa, não pode comportar tais versos sem a violação de algumas das suas regras…
Essa visão tão nova e especial das coisas será, talvez, fruto da sua não-vida passada numa quinta do Ribatejo – e se calhar, também, da sua instrução, que não passou da elementar. Quase dá vontade de dizer que a Natureza nunca foi apreendida por ninguém. Talvez o Alberto tenha sido o primeiro a ver o real sem a visão deturpada por medos que criaram uma série de construções filosóficas que tentam complicar a Natureza, quando, no fundo, ela é tão simples e natural como o levantar-se o vento. (Desculpe se me aproprio tanto das sua palavras, mas elas são tão exactas, apesar de tão simples, que não resisto a usá-las).
Mestre, também eu me comovo ao ler os seus versos. Uma comoção entre a nostalgia, a boa disposição e uma certa inveja: quantos poemas seus não gostaria eu de ter escrito! Fica a consolação de os ler e de serem também um pouco meus, quando os transporto na minha memória e os recordo, independentemente do lugar onde estou ou para onde vou. E por isso, por poder activar a sua visão das coisas em qualquer lugar, tenho só de lhe agradecer por esta nova perspectiva da eterna descoberta da novidade do mundo.
Deste seu imperfeito discípulo, um abraço para além da vida e da terra,

Tiago Aires

2 comentários:

Anónimo disse...

ao ler esta tua carta ao caeiro, consegui me imaginar outra vez no secundario, com um manual de portugues na mao, a estudar um grande escritor portugues (TU) que escreveu para este senhor da literatura portuguesa!!

parabens primo ta mesmo fantastica :D
agora so falta o teu livro de contos!

rita!

tulisses disse...

obrigado pelo elogio e pelo comentário!

esta carta acabou por ser incluída no primeiro livro, imagina... é que está mesmo gira, acho eu... alguns trabalhos no seminário até resultavam em coisas interessantes.

beijo

;)