Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...
Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquer
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
Dantes o mundo era da medida do seu alcance: o que podia ver e sentir e o que podia imaginar, o que não era muito. Tudo se reduzia então à rua onde vivia toda a gente que conhecia, à escola do seu irmão, à padaria, à mercearia, à igreja e aos campos que o rodeavam. Era feliz com a sua maneira recatada de ser, enfiado em salas que lhe pareciam sem fim, entretido com a sua própria fantasia. Depois começou a questionar o mundo. Ou antes, a chatear os adultos por causa do mundo.
Por exemplo, fazia-lhe confusão as pessoas serem pequenas ao ponto de caberem na televisão ou no rádio. E como eram capazes de fazer tudo o que faziam naquele espaço tão pequeno. Depois foi percebendo que era por uma outra maneira que prendia a nossa imagem e o nosso ser completo e o dava a ver ou a ouvir através dos aparelhos ligados à corrente. E percebeu-o quando o seu pai se decidiu elucidá-lo, fazendo gravações consigo que depois pôs na televisão e no rádio. Só não percebeu depois como aquilo funcionava, a cópia ser produzida tão fielmente, e teve medo que aquilo desgastasse o seu ser verdadeiro e pediu-lhe para que não o voltasse a fazer. Enquanto ele não percebia o funcionamento das coisas eléctricas e ainda efabulava a vida das pessoas pequenas dentro delas, a sua mãe costumava dizer-lhe que não podiam ter as duas coisas ligadas ao mesmo tempo porque as pessoas não podiam fazer tudo ao mesmo tempo nem podem estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ele dizia que deviam ser outras e então ela dizia que era um desrespeito de umas com as outras, pois ninguém se entenderia nem daria o devido valor. E assim convenceu-o a desligar ou um ou outro, e em determinadas alturas a desligar quer um quer outro, porque também as pessoas precisavam de fazer ó-ó. Ele achava aquilo tudo muito estranho porque não eram uma família com muito dinheiro e não sabia se podiam pagar a muita gente para estar ali metida na televisão e no rádio deles. Mais tarde descobriu que os outros meninos também tinham televisão e rádio, e que até eram as mesmas pessoas e achou que de alguma maneira elas mudavam de casa para casa, o que já devia ser mais barato a dividir por todos, ou eram outras muito parecidas, o que não explicava o dinheiro mas resolvia o problema grave da simultaneidade (não com estes termos, claro).
Depois foram as línguas. Porque havia pessoas a falar de uma maneira que ele não percebia? É que não entendia nenhuma palavra. Ele achava que aquilo era só para irritar e obrigar as pessoas a ler as legendas. Mas ele não sabia ler e não percebia as palavras. Às vezes a mãe lia em voz alta para que ele pudesse seguir, outras vezes não. E isso deixava-o frustrado e fugia então para o seu recanto favorito, o vão das escadas que era suficientemente grande para ele entrar e suficientemente pequeno para que mais ninguém o conseguisse.
E essa era precisamente outra questão que o inquietava: o espaço. A relação dos corpos com a imensidão do vazio. Mas ainda mais, a própria imensidão lhe metia medo e por isso se refugiava em espaços exíguos. Não conseguia perceber a imensidão: para que tanto espaço se éramos tão poucos? A aldeia era grande de mais. Todos se concentravam numa única rua – depois eram os campos a perder de vista. Mais tarde viria a perceber que eram necessários para que pudessem viver. E o rio era também um mistério. De onde viria, já que ele não o via surgir de lado algum e sem fim, sempre longe do alcance da vista e das fronteiras a que se permitia ir? Mas no fundo nenhuma destas questões verdadeiramente o inquietava. Esquecia-se delas pouco depois, satisfeitas, ou não, pelos pais.
Um dia saiu de carro com os pais. Era necessário ir a um outro sítio que ele ainda não conhecia. Viu assim passarem a seu lado imensidades desconhecidas. Outros muitos carros, outras muitas casas, outras muitas pessoas. Os minutos no relógio de pulso que ainda não sabia ler completamente iam passando. Desfilavam no seu pensamento as dúvidas sobre o espaço e a imensidade. Mas ele não podia saber de longitudes e latitudes, da imensidade da Terra, seus cinco continentes, seus cinco mares e seus quatro cantos, e do infinito do universo em constante expansão. Era algo que não podia conceber, ainda. Mas ele lá teria as suas próprias explicações. Por fim, pararam. À sua frente abria-se um campo amarelo, e depois um campo azul em movimento.
- Mãe, o que é isto?
- Isto é a praia. É aqui que o rio tem fim. No mar.
- E o mar, onde tem fim?
Mas o mar não tinha fim. Pelo menos assim lhe disse a Mãe, enquanto esperavam pelo pai que fora estacionar o carro. A Mãe deu-lhe a mão e foram pisando a areia.
- O mar cheira bem.
- Cheira a novo – disse a Mãe.
Enquanto se enterravam a mãe disse-lhe um segredo, talvez o maior de todos: nada havia mais no mundo senão ele, tudo era construído por eles para o filho, para que ele pudesse ser feliz e haver mais coisas com que crescer. Línguas, outras pessoas, rádios e televisões, terras. Nada disso existia a sério senão eles os três. E daquela vez lembraram-se de criar o mar e por isso ele cheirava tão bem e a novo. Ele sorriu:
- Eu sei.
Por exemplo, fazia-lhe confusão as pessoas serem pequenas ao ponto de caberem na televisão ou no rádio. E como eram capazes de fazer tudo o que faziam naquele espaço tão pequeno. Depois foi percebendo que era por uma outra maneira que prendia a nossa imagem e o nosso ser completo e o dava a ver ou a ouvir através dos aparelhos ligados à corrente. E percebeu-o quando o seu pai se decidiu elucidá-lo, fazendo gravações consigo que depois pôs na televisão e no rádio. Só não percebeu depois como aquilo funcionava, a cópia ser produzida tão fielmente, e teve medo que aquilo desgastasse o seu ser verdadeiro e pediu-lhe para que não o voltasse a fazer. Enquanto ele não percebia o funcionamento das coisas eléctricas e ainda efabulava a vida das pessoas pequenas dentro delas, a sua mãe costumava dizer-lhe que não podiam ter as duas coisas ligadas ao mesmo tempo porque as pessoas não podiam fazer tudo ao mesmo tempo nem podem estar em dois lugares ao mesmo tempo. Ele dizia que deviam ser outras e então ela dizia que era um desrespeito de umas com as outras, pois ninguém se entenderia nem daria o devido valor. E assim convenceu-o a desligar ou um ou outro, e em determinadas alturas a desligar quer um quer outro, porque também as pessoas precisavam de fazer ó-ó. Ele achava aquilo tudo muito estranho porque não eram uma família com muito dinheiro e não sabia se podiam pagar a muita gente para estar ali metida na televisão e no rádio deles. Mais tarde descobriu que os outros meninos também tinham televisão e rádio, e que até eram as mesmas pessoas e achou que de alguma maneira elas mudavam de casa para casa, o que já devia ser mais barato a dividir por todos, ou eram outras muito parecidas, o que não explicava o dinheiro mas resolvia o problema grave da simultaneidade (não com estes termos, claro).
Depois foram as línguas. Porque havia pessoas a falar de uma maneira que ele não percebia? É que não entendia nenhuma palavra. Ele achava que aquilo era só para irritar e obrigar as pessoas a ler as legendas. Mas ele não sabia ler e não percebia as palavras. Às vezes a mãe lia em voz alta para que ele pudesse seguir, outras vezes não. E isso deixava-o frustrado e fugia então para o seu recanto favorito, o vão das escadas que era suficientemente grande para ele entrar e suficientemente pequeno para que mais ninguém o conseguisse.
E essa era precisamente outra questão que o inquietava: o espaço. A relação dos corpos com a imensidão do vazio. Mas ainda mais, a própria imensidão lhe metia medo e por isso se refugiava em espaços exíguos. Não conseguia perceber a imensidão: para que tanto espaço se éramos tão poucos? A aldeia era grande de mais. Todos se concentravam numa única rua – depois eram os campos a perder de vista. Mais tarde viria a perceber que eram necessários para que pudessem viver. E o rio era também um mistério. De onde viria, já que ele não o via surgir de lado algum e sem fim, sempre longe do alcance da vista e das fronteiras a que se permitia ir? Mas no fundo nenhuma destas questões verdadeiramente o inquietava. Esquecia-se delas pouco depois, satisfeitas, ou não, pelos pais.
Um dia saiu de carro com os pais. Era necessário ir a um outro sítio que ele ainda não conhecia. Viu assim passarem a seu lado imensidades desconhecidas. Outros muitos carros, outras muitas casas, outras muitas pessoas. Os minutos no relógio de pulso que ainda não sabia ler completamente iam passando. Desfilavam no seu pensamento as dúvidas sobre o espaço e a imensidade. Mas ele não podia saber de longitudes e latitudes, da imensidade da Terra, seus cinco continentes, seus cinco mares e seus quatro cantos, e do infinito do universo em constante expansão. Era algo que não podia conceber, ainda. Mas ele lá teria as suas próprias explicações. Por fim, pararam. À sua frente abria-se um campo amarelo, e depois um campo azul em movimento.
- Mãe, o que é isto?
- Isto é a praia. É aqui que o rio tem fim. No mar.
- E o mar, onde tem fim?
Mas o mar não tinha fim. Pelo menos assim lhe disse a Mãe, enquanto esperavam pelo pai que fora estacionar o carro. A Mãe deu-lhe a mão e foram pisando a areia.
- O mar cheira bem.
- Cheira a novo – disse a Mãe.
Enquanto se enterravam a mãe disse-lhe um segredo, talvez o maior de todos: nada havia mais no mundo senão ele, tudo era construído por eles para o filho, para que ele pudesse ser feliz e haver mais coisas com que crescer. Línguas, outras pessoas, rádios e televisões, terras. Nada disso existia a sério senão eles os três. E daquela vez lembraram-se de criar o mar e por isso ele cheirava tão bem e a novo. Ele sorriu:
- Eu sei.
6 comentários:
Tulisses, acho que passei pelo mesmo mundo à minha medida. Depois fui crescendo e mudando. Está excelente este texto. Fiquei feliz por me rever aqui e saudoso do tempo em que nem suspeitava que o mar era infinito e o mundo uma terra imensa!
Abraço
obrigado, paulo. escrevi-o a partir de algumas das minhas próprias dúvidas de quando era pequeno. mas tal como a personagem, não ligava muito a elas e tinha as minhas ideias próprias...
e já agora, em relação à exposição do senhor Saramago, ou foi do meu «belo» cv ou por ter sido indicado por ti, acabei por ser também escolhido! Obrigado, a sério!
olha, já me tinha interrogado qual teria sido o desfecho da situação e fico contente por ter resultado e não deve ter sido por eu ter escrito à Professora! Acho que não tenho muitas dúvidas sobre a imparcialidade dela. Foste escolhido por o mereceste, boa sorte e que a remuneração valha a pena!
abraços
pois a remuneração parece que vai ser fraquinha... mas estando na casa de família não há problema. o trabalo não via ser por aí além, embora exija uma preparação séria... e entretanto cosnegui ser o terceiro (para três vagas) para uma bolsa de iniciação científica na flul (estou à espera dos resultados definitivos). é sempre assi, vem tudo ao mesmo tempo... e a dissertação tão atrasada...
abraço
TUlinho,
Gostei muito muitíssimo destes teus Geografia e Ontologia.
Muitos parabéns
... e nem pergunto que conversa é essa aí que mete A Professora e o Saramago à mistura :)))
eu explico tudo num próximo post, Denise. Só agora reparei que no meu segundo comentário que aqui escrevia cometi tantas gralhas... meu Deus... já era o sono e o cansaço da viagem...
obrigado
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