quarta-feira, janeiro 21, 2009

Isto não é um regresso...

Fui ver O Mercador de Veneza, no São João, encenação de Ricardo Pais. Tudo de bom, desde a encenação ao texto (e suas opções), passando pelo elenco extraordinário e palco e tudo mais. Nada de novo, portanto. Gosto muito do que costumo ver lá - mas não é disso que quero escrever. Esta peça em especial marcou-me de forma estranha, impressa na alma... No trabalho (já pareço gente crescida) ninguém pode já ouvir-me falar da peça, do texto, em especial de duas frases, ambas ditas por António (Albano Jerónimo), a personagem ambígua da qual pouco se sabe e da qual realmente se gostaria de saber, com uma relação um pouco dúbia com Bassânio (Pedro Almendra). Essas frases são «Na verdade, não sei por que ando tão triste» e «o mundo não passa de mundo». Logo a abrir, como que escolhidas de propósito para mim. Mas há mais... Fica aí o início do texto (não a versão do Daniel Jonas, mais interessante, mas ainda assim dá para seguir a ideia; azuis destacantes...), mas não conto. Ficam também imagens dessa sequência do espectáculo. E realmente não sei os motivos...



«ATO I

Cena I
Veneza. Uma rua. Entram Antônio. Salarino e Salânio.

ANTÓNIO - Não sei, realmente, porque estou tão triste. Isso me enfara; e a vós também, dissestes. Mas como começou essa tristeza, de que modo a adquiri, como me veio, onde nasceu, de que matéria é feita, ainda estou por saber. E de tal modo obtuso ela me deixa, que mui dificilmente me conheço.

SALARINO - Vosso espírito voga em pleno oceano, onde vossos galeões de altivas velas - como burgueses ricos e senhores das ondas, ou qual vista aparatosa distendida no mar - olham por cima da multidão de humildes traficantes que os saúdam, modestos, inclinando-se, quando perpassam com tecidas asas.

SALÂNIO - Podeis crer-me, senhor: caso eu tivesse tanta carga no mar, a maior parte de minhas afeições navegaria com minhas esperanças. A toda hora folhinhas arrancara de erva, para ver de onde sopra o vento; debruçado nos mapas, sempre, procurara portos, embarcadoiros, rotas, sendo certo que me deixara louco tudo quanto me fizesse apreensivo pela sorte do meu carregamento.

SALARINO - Meu hálito, que a sopa deixa fria, produzir-me-ia febre, ao pensamento dos desastres que um vento muito forte pode causar no mar. Não poderia ver correr a ampulheta, sem que à idéia me viessem logo bancos e mais bancos de areia e mil baixios, inclinado vendo o meu rico "André" numa coroa, mais fundo o topo do que os próprios flancos, para beijar a tumba; não iria à igreja sem que a vista do edifício majestoso de pedra me fizesse logo lembrado de aguçadas rochas, que, a um simples toque no meu gentil barco, dispersariam pelas ondas bravas suas especiarias, revestindo com minhas sedas as selvagens ondas. Em resumo: até há pouco tão valioso tudo isso; agora, sem valia alguma. Pensamento terei para sobre essa conjuntura pensar, e há de faltar-me pensamento no que respeita à idéia de que tal coisa me faria triste? Mas não precisareis dizer-me nada: sei que Antônio está triste só de tanto pensar em suas cargas.

ANTÔNIO - Podeis crer-me, não é assim. Sou grato à minha sorte; mas não confio nunca os meus haveres a um só lugar e a um barco, simplesmente nem depende o que tenho dos azares do corrente ano, apenas. Não me deixam triste, por conseguinte, as minhas cargas.

SALARINO - Então estais amando.

ANTÔNIO - Ora! Que idéia!

SALARINO - Não é paixão, também? Então digamos que triste estais por não estardes ledo, e que saltar e rir vos fora fácil e acrescentar, depois, que estais alegre porque triste não estais. Pelo deus Jano de dupla face, a natureza, agora, confecciona uns sujeitos bem curiosos: uns, de olhos apertados, riem como papagaio trepado numa gaita de foles; outros andam com tal cara de vinagre, que nunca os dentes mostram à guisa de sorriso, muito embora Nestor jurasse que a pilhéria é boa.

(Entram Bassânio, Lourenço e Graciano.)

SALÂNIO - Eis que vem vindo aí Bassânio, vosso muito nobre parente, acompanhado de Lourenço e Graciano. Passai bem, que em melhor companhia vos deixamos.

SALARINO - Ficaria convosco até deixar-vos mais disposto, se amigos muito dignos não me solicitassem neste instante.

ANTÔNIO - Sei apreciar em tudo vossos méritos. Os negócios vos chamam, estou certo, e o ensejo aproveitais para deixar-nos.

SALARINO - Bom dia, caros lordes.

BASSÂNIO - Quando riremos outra vez, senhores? Dizei-nos: quando? Quase vos tornastes estranhos para nós. É concebível semelhante atitude?

SALARINO -Nossas folgas irão ficar só ao dispor das vossas.

(Saem Salarino e Salânio.)

LOURENÇO - Caro senhor Bassânio, já que achastes Antônio, vos deixamos. Mas mui gratos vos
ficaremos, se hoje à noite, à ceia, vos lembrardes do ponto em que devemos encontrar-nos de novo.

BASSÂNIO -Combinado.

GRACIANO - Signior Antônio, pareceis doente. Preocupai-vos demais com este mundo. Perda de vulto é tudo o que nos custa tantos cuidados. Podeis dar-me crédito: mudastes por maneira extraordinária.

ANTÔNIO - O mundo, para mim, é o mundo, apenas, Graciano: um palco em que representamos, todos nós, um papel, sendo o meu triste

O Mercador de Veneza, William Shakespeare, excerto retirado daqui.

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