sexta-feira, julho 27, 2012

4 poemas de Carlos Wallenstein



Óleo sobre painel. Morning Mist, de Christa Eppinghaus-Johnston



AS MÃOS E A ROSA

(Relatório)

Na madrugada pardacenta
entre armações veleiras
no cais dos pescadores
era ainda o horizonte
coalhado de vagalumes

a Polícia Geral
surpreendeu
a existência clandestina
temerária
para mais parecendo apetecida
de duas mãos e uma rosa

Estes objectos
se passam a descrever:

Rosa sem qualificação particular
entre rosa e vermelho
pétalas semi-abertas
como a boca da detida
a quem pertencia uma das mãos em questão
A outra mão sombria
de pêlos lavrada
e veias atravessada
pertencia ao cidadão
por quem naquele instante
a detida era abraçada

As mãos possuíam a rosa
A rosa era possuída
As mãos mutuamente
possuíam as mãos
E cada pessoa
depois na prisão
se declarou possuidor
da mão que possuía a outra mão
que possuía a rosa

E cada um deles
com grande arrogância
se declarou possuidor
da pessoa do outro
no mesmo teor

em que o eram da rosa
através dum fenómeno
a que chamaram amor
Detiveram-se os três objectos
mas não havendo instrumento
para separar as mãos
dos corpos respectivos
prenderam-se os corpos também
e ainda bem
pois possuindo-se
mutuamente segundo a declaração
bem é que fiquem na prisão

pois todas estas posses
− tanta posse tanta posse −
se verificaram à margem
da Teoria da Tributação


****** Eu José Calcador
****** da Polícia Geral
****** de Sua Majestade Solar
****** El-Rei D. Nabucodonosor


****


Nada sou do que quis. Assim me quero
se é querer o osso que me foi
atirado; se crer no todo influi
desta paisagem desenhada em série.

Assim ou o contrário? Pondere-o
não eu mas quem o ponderar obriga
com metodologias de formiga
e trompas lautas de soar aéreo.

Tem como sou, assim me fui compondo
no desastre e engaste, na fateixa
manual do rapa tira põe e deixa,
eu de mim meu anzol e meu biombo.

Nem outro não ser dói ou me corrói.
Igual aos dois; herói/anti-herói.


****


A água do rio espelhou o teu rosto
e os teus seios, minha amada,
Quando te debruçste para beber
à sombra dos salgueiros

Na foz do rio espero eternamente
que as águas me tragam consigo
a tua imagem

***

Homenagem ao Único/Último

Alegre, alegre sim:
porém, morto


Carlos Wallenstein, Obras Completas. 1 Poesia, Salamandra: 1998:,p.77-9, 167, 205, 310

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