quinta-feira, agosto 23, 2012

90 Anos, 90 Palavras



Celebrando Saramago, como sempre deve ser, a Fundação a que dá nome pede que os seus leitores escolham uma palavra que relacionem com o autor e que a comentem. Eu fui o quinto a ser publicado, cá fica o textinho. Também podem ler aqui, o sítio original.


Casa

Os livros que nos deixou são casas com as janelas abertas onde deu ao mundo as histórias de que mais fazia caso. Podemos ficar nelas, ir aos seus jardins, percorrer os caminhos que nos levam até elas. oncedido o maior galardão literário da língua portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela gritou a pedir ajuda. Os que estávamos em asa saímos para a rua e vimos que o animal feroz era um cachorro assustado com o susto da mulher. O animal entrou pela porta aberta do jardim, mexendo sem jeito as pernas, um pouco desajeitado, feliz por ninguém o maltratar. Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha recebido o Prémio Camões, soubemos, soubemo-lo nesse instante, que o cão que tinha encontrado a sua casa não ia ter outro nome que o do grande poeta português. E assim, pelo menos em Lanzarote, Camões foi mencionado centenas de vezes por dia, foi vida e foi homenagem. E este cão doce e nobre, que nunca aprendeu a comer devagar porque até chegar à Casa tinha tido que lutar contra a fome e o abandono, com a sua gravata branca desenhada no pelo negro, que foi o modelo para “O Achado” d' A Caverna, um cão que, como todos os cães que Saramago inventa, é a melhor resposta animal à melhor consciência humana, morreu com todos os seus anos e sempre amado.

Quando o cão chamado Camões regressou a casa depois da morte de José Saramago, não conseguiu aceitar a ausência. Esteve inquieto durante o dia, mas quando chegou a noite e não viu o dono nem na cama nem no sofá que ocupava habitualmente, quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos, quando percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte, uivou, gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la. Não bastaram abraços para consolá-lo, nem palavras carinhosas: ia e vinha de um lugar para outro, numa correria que partia o coração, gemia com uma dor humana. Por isso, um amigo que estava lá em casa e ali passou a noite, intitulou no dia seguinte a sua coluna jornalística: “Camões chora por Saramago”.

Saramago já não poderá chorar por Camões, agora que morreu tão docemente como viveu, tão honestamente animal que apetece aprender com a sua forma de estar na vida. Ou talvez, sem chorar, se encontrem na sensibilidade criada que nada nem ninguém pode destruir, porque tanta vida partilhada, e em companhia tão amável, não pode perder-se. Estão por aí, em livros e memórias, em corações que não se rendem, José Saramago com os seus três cães, Pepe, Greta e Camões, pondo beleza no mundo, imortais na vivência pessoal dos que sabem ver e também sentir.

Pilar del Río
 Casas tão diferentes, seja o barco ou a mulher do homem que queria um barco, seja a Lisboa do revisor Raimundo Silva ou a que o cão Achado encontrou em Cipriano e Marta - e aquela Casa onde viveu permanece e atrai, porque «olharem-se era a casa de ambos», diz de Baltasar e Blimunda. oncedido o maior galardão literário da língua portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela gritou a pedir ajuda. Os que estávamos em asa saímos para a rua e vimos que o animal feroz era um cachorro assustado com o susto da mulher. O animal entrou pela porta aberta do jardim, mexendo sem jeito as pernas, um pouco desajeitado, feliz por ninguém o maltratar. Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha recebido o Prémio Camões, soubemos, soubemo-lo nesse instante, que o cão que tinha encontrado a sua casa não ia ter outro nome que o do grande poeta português. E assim, pelo menos em Lanzarote, Camões foi mencionado centenas de vezes por dia, foi vida e foi homenagem. E este cão doce e nobre, que nunca aprendeu a comer devagar porque até chegar à Casa tinha tido que lutar contra a fome e o abandono, com a sua gravata branca desenhada no pelo negro, que foi o modelo para “O Achado” d' A Caverna, um cão que, como todos os cães que Saramago inventa, é a melhor resposta animal à melhor consciência humana, morreu com todos os seus anos e sempre amado.

Quando o cão chamado Camões regressou a casa depois da morte de José Saramago, não conseguiu aceitar a ausência. Esteve inquieto durante o dia, mas quando chegou a noite e não viu o dono nem na cama nem no sofá que ocupava habitualmente, quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos, quando percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte, uivou, gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la. Não bastaram abraços para consolá-lo, nem palavras carinhosas: ia e vinha de um lugar para outro, numa correria que partia o coração, gemia com uma dor humana. Por isso, um amigo que estava lá em casa e ali passou a noite, intitulou no dia seguinte a sua coluna jornalística: “Camões chora por Saramago”.

Saramago já não poderá chorar por Camões, agora que morreu tão docemente como viveu, tão honestamente animal que apetece aprender com a sua forma de estar na vida. Ou talvez, sem chorar, se encontrem na sensibilidade criada que nada nem ninguém pode destruir, porque tanta vida partilhada, e em companhia tão amável, não pode perder-se. Estão por aí, em livros e memórias, em corações que não se rendem, José Saramago com os seus três cães, Pepe, Greta e Camões, pondo beleza no mundo, imortais na vivência pessoal dos que sabem ver e também sentir.

Pilar del Río


Saramago fica-nos como uma casa onde habita a língua portuguesa em restauro em face a um mundo que precisa de conserto.

2 comentários:

Anónimo disse...

De fato, os autores são muitas vezes os melhores críticos :-)

tulisses disse...

ehehe, só está fantando o autor ;)