Celebrando Saramago, como sempre deve ser, a Fundação a que dá nome pede que os seus leitores escolham uma palavra que relacionem com o autor e que a comentem. Eu fui o quinto a ser publicado, cá fica o textinho. Também podem ler
aqui, o sítio original.
Casa
Os livros que nos deixou são casas com
as janelas abertas onde deu ao mundo as histórias de que mais fazia caso.
Podemos ficar nelas, ir aos seus jardins, percorrer os caminhos que nos levam
até elas. oncedido o maior galardão
literário da língua portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela
gritou a pedir ajuda. Os que estávamos em asa saímos para a rua e vimos que o
animal feroz era um cachorro assustado com o susto da mulher. O animal entrou
pela porta aberta do jardim, mexendo sem jeito as pernas, um pouco desajeitado,
feliz por ninguém o maltratar. Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha
recebido o Prémio Camões, soubemos, soubemo-lo nesse instante, que o cão que
tinha encontrado a sua casa não ia ter outro nome que o do grande poeta
português. E assim, pelo menos em Lanzarote, Camões foi mencionado centenas de
vezes por dia, foi vida e foi homenagem. E este cão doce e nobre, que nunca
aprendeu a comer devagar porque até chegar à Casa tinha tido que lutar contra a
fome e o abandono, com a sua gravata branca desenhada no pelo negro, que foi o
modelo para “O Achado” d' A Caverna, um cão que, como todos os cães que
Saramago inventa, é a melhor resposta animal à melhor consciência humana,
morreu com todos os seus anos e sempre amado.
Quando o cão chamado Camões regressou a casa depois da morte de José Saramago,
não conseguiu aceitar a ausência. Esteve inquieto durante o dia, mas quando
chegou a noite e não viu o dono nem na cama nem no sofá que ocupava
habitualmente, quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos,
quando percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte,
uivou, gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la. Não
bastaram abraços para consolá-lo, nem palavras carinhosas: ia e vinha de um
lugar para outro, numa correria que partia o coração, gemia com uma dor humana.
Por isso, um amigo que estava lá em casa e ali passou a noite, intitulou no dia
seguinte a sua coluna jornalística: “Camões chora por Saramago”.
Saramago já não poderá chorar por Camões, agora que morreu tão docemente como
viveu, tão honestamente animal que apetece aprender com a sua forma de estar na
vida. Ou talvez, sem chorar, se encontrem na sensibilidade criada que nada nem
ninguém pode destruir, porque tanta vida partilhada, e em companhia tão amável,
não pode perder-se. Estão por aí, em livros e memórias, em corações que não se
rendem, José Saramago com os seus três cães, Pepe, Greta e Camões, pondo beleza
no mundo, imortais na vivência pessoal dos que sabem ver e também sentir.
Pilar del Río
Casas tão diferentes, seja o barco ou a
mulher do homem que queria um barco, seja a Lisboa do revisor Raimundo Silva ou
a que o cão Achado encontrou em Cipriano e Marta - e aquela Casa onde viveu
permanece e atrai, porque «olharem-se era a casa de ambos», diz de Baltasar e
Blimunda. oncedido o maior galardão literário
da língua portuguesa, um cão assustou tanto uma vizinha que ela gritou a pedir
ajuda. Os que estávamos em asa saímos para a rua e vimos que o animal feroz era
um cachorro assustado com o susto da mulher. O animal entrou pela porta aberta
do jardim, mexendo sem jeito as pernas, um pouco desajeitado, feliz por ninguém
o maltratar. Quando Saramago apareceu a anunciar que tinha recebido o Prémio
Camões, soubemos, soubemo-lo nesse instante, que o cão que tinha encontrado a
sua casa não ia ter outro nome que o do grande poeta português. E assim, pelo
menos em Lanzarote, Camões foi mencionado centenas de vezes por dia, foi vida e
foi homenagem. E este cão doce e nobre, que nunca aprendeu a comer devagar
porque até chegar à Casa tinha tido que lutar contra a fome e o abandono, com a
sua gravata branca desenhada no pelo negro, que foi o modelo para “O Achado” d'
A Caverna, um cão que, como todos os cães que Saramago inventa, é a melhor
resposta animal à melhor consciência humana, morreu com todos os seus anos e
sempre amado.
Quando o cão chamado Camões regressou a casa depois da morte de José Saramago,
não conseguiu aceitar a ausência. Esteve inquieto durante o dia, mas quando
chegou a noite e não viu o dono nem na cama nem no sofá que ocupava
habitualmente, quando uma e mil vezes percorreu o espaço entre os dois quartos,
quando percebeu que o dono já não estava nem ia estar, que isso é a morte,
uivou, gritou, rasgou-se numa dor que arranha a alma só de descrevê-la. Não
bastaram abraços para consolá-lo, nem palavras carinhosas: ia e vinha de um
lugar para outro, numa correria que partia o coração, gemia com uma dor humana.
Por isso, um amigo que estava lá em casa e ali passou a noite, intitulou no dia
seguinte a sua coluna jornalística: “Camões chora por Saramago”.
Saramago já não poderá chorar por Camões, agora que morreu tão docemente como
viveu, tão honestamente animal que apetece aprender com a sua forma de estar na
vida. Ou talvez, sem chorar, se encontrem na sensibilidade criada que nada nem
ninguém pode destruir, porque tanta vida partilhada, e em companhia tão amável,
não pode perder-se. Estão por aí, em livros e memórias, em corações que não se
rendem, José Saramago com os seus três cães, Pepe, Greta e Camões, pondo beleza
no mundo, imortais na vivência pessoal dos que sabem ver e também sentir.
Pilar del Río
Saramago fica-nos como
uma casa onde habita a língua portuguesa em restauro em face a um mundo que
precisa de conserto.
2 comentários:
De fato, os autores são muitas vezes os melhores críticos :-)
ehehe, só está fantando o autor ;)
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