sexta-feira, outubro 02, 2009

A Poesia de Arlindo Barbeitos

Como prometido num post anterior, aqui ficam alguns poemas de Arlindo Barbeitos, cuja obra me deu muito trabalho nos últimos anos para conseguir escrever uma dissertação.
Selecção não comentada, subjectiva, como quase todas. Respeita apenas a ordem de publicação das obras: Angola Angolê Angolema - AAA - (edição bilingue Português/Alemão, Amesterdão, 1974; edição portuguesa, Lisboa: Sá da Costa, 1976, edição angolana, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1976), Nzoji - N - (Lisboa: Sá da Costa, 1979, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1979), Fiapos de Sonho - FS - (Lisboa: Vega, 1992, Luanda: União dos Escritores Angolanos, 1993) e Na Leveza do Luar Crescente - LLC - (Lisboa: Caminho, 1999).


Angola Angolê Angolema

árvore sem sombra
mulher sem sexo
vento sem poeira
cão sem rabo (p.18)

****
eu quero escrever coisas verdes
verdes
como as folhas desta floresta molhada
verdes
como teus olhos
que só a saudade deixa ver
verdes
como a menina duma trança só
que soletra em português sa-po sa-po
verdes
como a cobra esguia que me surpreendeu
naquela cubata sem outra história
verdes
como a manhã azul
que acaba de nascer

eu quero escrever coisas verdes (p.26).

****
um homem de chuva
jaz morto no chão de folhas podres

talvez só os pássaros
que parecem fazer ninho
nas ruínas das casas de nuvem
possam dar notícia

um homem de chuva
jaz morto no chão de folhas podres (p.31)

****
matar uma andorinha
é pecado
diz o meu povo

assassinar um homem
é crime
diz a tua lei

no entanto

naquele ano
que afirmavam de graça
a morte
de gorda
não se podia curvar (p.41)

****
para ver
se o camaleão
tomava a cor vermelha
do fogo
tu o botaste, meu irmão
na queimada grande

então
ele ficou castanho
porque assado. (p.55)


Nzoji

o
menino
pequeno
muito pequeno
nu
tudo nu
traz botas
botas muito grandes (p.3)

****
no céu amendoado de teus olhos
vejo estrelas
que são bombas (p.4).

****
o mabeco raivoso abriu a boca e comeu o vento
o menino sujo atirou pedras ao céu
a pacaça ferida caiu na lama da lagoa sem água
a mulher grávida quebrou a sanga vazia
o bode velho tentou de novo cobrir a cabra sem leite (p.8).

****
vogando
vogando vem
um dongo
sem ninguém
cirandando
cirandando vem
uma menina
sem o seu bem
marchando
marchando vem
um soldado sem vintém
voando
voando vem
um pássaro que nem asas tem
vogando
vogando vem
um dongo
sem ninguém (p.14)

****
quando o melaço
escorre pelas pontas sem forma
quando o aroma de mel quente
atrai as abelhas
quando as manchas pretas
no fundo amarelo
lembram o leopardo

então
come-se a banana devagarinho
lambendo-se os dedos depois (p. 24)

****
pelas palavras
podia-se crer
que
o falar de milho
faz a lavra
e que
gestos ao longe
são de mudos
em terra de cegos (p.32)

Fiapos de Sonho

roçando
pelo teu rosto
tombou ao chão
a estrela cadente



guarda-a
é o ouro dos sonhos (p.13)

****
ao de leve amanhecendo
abrem-se a flor e o dia
e
meus dedos roçam suaves
tua face inda nocturna
de súbito
rebenta a bomba
na incandescência de luz e orvalho
de uma aurora indiferente


ao de leve amanhecendo
abrem-se a flor e o dia (p.45)

****
a sul do sonho
a norte da esperança


a minha pátria
é um órfão
baloiçando de muletas
ao tambor das bombas


a sul do sonho
a norte da esperança (p.46)



Na Leveza do Luar Crescente

distraída na verdura

a garça branca
repousa sobre uma pata só
apodrecido na morte
o soldado preto
nem pernas tem (p.36)

****
borboletas de luz

esvoaçando
de cadáver em cadáver
colhem
o fedor dos mortos em
vão

e
pelos buracos da renda
dos dias
passam álacres
do mundo do esquecimento
ao país da indiferença
levando consigo
o pólen fatal
das flores da guerra

borboletas de luz (p.38)

****

Sem comentários: