quarta-feira, novembro 30, 2011

um poema de Flora Osório




Minha colega de trabalho e amiga das aventuras africanas e literárias, vai comigo ao teatro às vezes ;)


Inquietação

Às vezes quero estar bem
por entre imagens e metáforas.
Longe da realidade,
refugio-me a pensar.
Mas quando começo a escrever,
tudo me inquieta
na caligrafia do poema!


Flora Osório, Dos Sons de África aos Sons do Meu Sentir, AEAS, p.43

A Pátria dentro da Pátria



Nasci no Porto. A cidade, os seus arredores, as praias próximas, descendo para o sul, permanecem para mim a pátria dentro da pátria, a Terra materna, o lugar primordial que me funda.


Ali estão as tílias enormes, as manhãs de nevoeiro, as praias saturadas de maresia, os rochedos cobertos de algas e anémonas, as primaveras botticellianas, os plátanos, a cerejeira, as camélias.


Ali o rio, as casas em cascata, os barcos deslizando rente à rua nas tardes cor de frio do Inverno.


Ali o cais, a Ribeira, os rostos, as vozes, os gritos, os gestos. Uma beleza funda, grave, rude e rouca. Escadas, arcadas, ruelas abrindo para o labirinto do fundo do mar da cidade. E, aqui e além, um rosto emergindo do fundo do mar da vida.


Porque ali é a cidade onde pela primeira vez encontrei os rostos de silêncio e de paciência cuja interrogação permanece.


Porque ali é o lugar onde para mim começaram todos os maravilhamentos e todas as angústias.


Cidade onde sonhei cidades distantes, cidade que habitei e percorri na ilimitada disponibilidade interior da adolescência.


Descia pelo Campo Alegre, passava a Igreja de Lordelo, seguia entre muros de jardins fechados.


Através das grades de ferro dos portões viam-se rododendros, buxos, cameleiras.


Depois surgia um rio e ao longo do rio eu caminhava sobre os cais de pedra, até à barra, até aos rochedos onde se espraiam as ondas.


Histórias de naufrágios, de barcos perdidos, de navios encalhados. Por isso nas noites de temporal se rezava pelos pescadores. Ouvia-se ao longe o tumulto do mar onde navegavam os pequenos barcos da Aguda tentando chegar à praia. Quando a trovoada estava próxima, a luz apagava-se. Então se acendiam velas e se rezava a Magnífica. (…)


Porque nasci no Porto sei o nome das flores e das árvores e não escapo a um certo bairrismo. Mas escapei ao provincianismo da capital.


Sophia de Mello Breyner Andresen, in Eugénio de Andrade,
Daqui Houve Nome Portugal, Antologia de verso e prosa sobre o Porto

Deafio: 11

Em bom ritmo, com boas companhias, o desafio vai-se cumprindo e as sugestões multiplicando. Da descoberta real de (Ana) Paula Tavares e de Joseph Conrad, passando pela belíssima edição de Daqui Houve Nome Portugal, até chegar aos belíssimos livros entre a ficção, o policial e a realidade dos escritores em produções de Manguel e Verissimo, houve tempo para boas leituras (algumas opiniões começam a ser apresentadas aqui). E bons filmes também, de que destaco alguns que me parecem mesmo muito bons, como: Barney's Version, Begginners (com uns irrepreensíveis Ewan McGregor e Christopher Plummer e um cão de que, finalmente, gostei), e ainda La Piel que Habito e Another Earth, que têm um ou outro pormenor de que não gostei tanto, mas muito bons também. Destaque ainda para a curta-metragem Dragons: Gift of the Night Fury, uma espécie de história com sabor natalício a partir do meu filme de animação favorito, How to train your dragon.
O desafio segue a todo o vapor, já dó faltam 14 livros e 30 filmes ;)


Livros:

123. A Cabeça de Salomé, Ana Paula Tavares, Caminho, 144p.****
124. O Lago da Lua, Paula Tavares, Caminho, 56p.***(*)
125. Dizes-me coisas amargas como os frutos, Paula Tavares, Caminho, 48p.***
126. Histórias Inquietas, Joseph Conrad, BI, 192p.***
127. O Coração das Trevas, Joseph Conrad, Visão, 96p.****
128. Juventude, Joseph Conrad, Quasi, 96p.***(*)
129. Linha de Sombra, Joseph Conrad, Público/Mil Folhas, 160p.****(*)
130. Daqui Houve Nome Portugal, org. Eugénio de Andrade, O Oiro do Dia, 294p.*****
131. O Túnel, Ernesto Sábato, Relógio D’Água, 144p.***
132. Dos Sons de África aos Sons do meu Sentir, Flora Osório, AEAS, 88p.***(*)
133. O Romance das Ilhas Encantadas, Jaime Cortesão, Vega, 52p.****
134. Borges e os orangotangos eternos, Luís Fernando Verissimo, Asa, 144p.*****
135. Stevenson sob as palmeiras, Alberto Manguel, Asa, 80p.****
136. A revolução eletrónica, William Burroughs, Vega, 96p.***


Filmes:

241. My Blueberry Nights, Kar Wai Wong****
242. Barney's Version, Richard Lewis*****
243. Humpday, Lynn Shelton***
244. Homme au Bain, Chistophe Honoré**
245. Paranormal Activity, Oren Peli**(*)
246. A Corte do Norte, João Botelho****(*)
247. 2012, Roland Emmerich***(*)
248. Don't be Afraid of the Dark, Troy Nixey***(*)
249. Inkheart, Iain Softley****(*)
250. L'Illusioniste, Sylvain Chomet****
251. Jacboots on Whitehall, Edward McHenry e Rory McHenry****
252. Beginners, Mike Millis*****
253. The Switch, Josh Gordon e Will Speck****
254. War of the Worlds, Steven Spielberg***
255. Kick-Ass, Matthew Vaughn****
256. Mistérios de Lisboa, Raoul Ruíz****
257. Rare Exports, Jamari Helander***(*)
258. The Change Up, David Dobkin***
259. I Sell the Dead, Glenn McQuaid*****
260. Chasseurs de Dragons, Guillaume Evernel, Arthur Qwak****(*)
261. Metropia, Tarik Salch***(*)
262. La Piel que Habito, Pedro Almodóvar*****
263. Beautiful Boy, Shawn Ku****(*)
264. Merlin and the War of Dragons, Mark Atkins**
265. Another Earth, Mike Cahill****(*)
266. The Hangover, Todd Phillips****
267. Dragons: Gift og the Night Fury, Tom Owens*****
268. The Happening, M. Night Shyamalan****
269. Solomon Kane, Michael J. Bassett***(*)
270. Due Date, Todd Phillips****

domingo, novembro 06, 2011

três poemas de (Ana) Paula Tavares

´

Aquela mulher que rasga a noite
com o seu canto de espera
não canta
Abre a boca
e solta os pássaros
que lhe povoam a garganta

***

O meu amado chega e enquanto despe as sandálias de couro
marca com o seu perfume as fronteiras do meu quarto.
Solta a mão e cria barcos sem rumo no meu corpo.
Planta árvores de seiva e folhas.
Dorme sobre o cansaço
embalado pelo momento breve de esperança.
Traz-me laranjas. Divide comigo os intervalos da vida.
Depois parte.
...........................................................................................
Deixa perdidas como um sonho as belas sandálias de couro.

*****

Perguntas-me do silêncio
eu digo

meu amor que sabes tu
do eco do silêncio
como podes pedir-me palavras
e tempo
se só o silêncio permite
ao amor mais limpo
erguer a voz
no rumor dos corpos


Paula Tavares, O Lago da Lua, Lisboa: Caminho, 1999, p.17, 19, 29.

quarta-feira, novembro 02, 2011

A minha palavra favorita - Girassol



das muitas palavras que povoam a minha língua, girassol tem-me sido a mais afetiva. retorno e regresso e ciclo. ver, seguir, observar. um ser que tem como atitude seguir a luz parece ser um exemplo ignorado. razão tinha Caeiro por nele ver uma figura a elogiar - «o meu olhar é nítido como um girassol» - nítido porque cheio de luz, a luz do Sol, e ele próprio ser um olho de inexcedível beleza e rigor. o girassol foi feito para ver e estar atento, mas também para estarmos atentos a ele e para o vermos. e podemos também tocar-lhe a pupila, na rugosidade agradável da perfeição. seguir sem sair do sítio, ser do tamanho do que se vê, percorrer a distância da solidão com a vontade, o gesto. o amarelo é cópia, é propósito solar reafirmado, o verde das folhas vida que se agita e constrói em torno da luz, sol terrestre em menor tamanho. palavra justa, verbo e nome em nome, com a flor, verbo e nome em ação e essência. assim é por vezes o amor, quando nos torna girassóis uns dos outros - uns dos outros, porque de si é já o Narciso e é outra história e outra palavra bem diferentes. ou ser o oposto de tudo isto, de tudo e todos. girassol que, no meio dos outros, preferisse ver o espaço subitamente iluminado. ou, mais linearmente, o girassol que rema contra a maré.

cf. esta história das palavras favoritas.