segunda-feira, julho 23, 2012

Assim são as algas, diz Albano Martins

uma seleção longa, bem sei, mas ainda assim incompleta, de um poeta que me agradou particularmente nestas primórdios de verão. gostei muito, dos poemas com pássaros e flores, dos haikus, das reflexões metapoéticas, das relações intertextuais com pinturas, desenhos e esculturas de diversas proveniências... Há já uma nova edição da sua poesia completa, muito mais extensa que esta que li, mas enfim, era a que havia comprado, mas aqui fica a referência à nova. E aqui alguns dos muitos poemas: 




Não forces a tua inspiração.
Deixa a poesia vir naturalmente
e não obrigues a mentir o coração.

Procura ser espontâneo,
A verdadeira beleza
está no que o homem tem de semelhante
com a natureza.

*

Descem as pálpebras sobre
o sono vigilante.

É preciso, amor,
dar um nome a esse instante.

**

À laranja não
se lhe tira a casca,
mas o coração.

**

Um dia voltarei à morada das papoilas
colher os versos vermelhos
que semeei na seara.

Um dia o vento estará maduro.

***

A face contra a face. O pulso
contra o peito. A pérgola
do leme a pino e a prumo.

****

Só o luto corrompe.
De amoras
maduras não te falo - trago-te
o verão num cesto
de morangos e papoilas, um
candelabro de medronhos
para as pulsões do inverno.
Digo-te:
a morte não nos pertence.
****

O verão deixa,
como herança, ao outono
um leque de folhas secas.

*****

Romãs; as últimas
brasas do incêndio
do verão.

*****

ÍDOLOS

São de barro, de fibra sintética e de barro, e de barro se diz também que alguns homens têm os pés. Aí reside, por isso, ao mesmo tempo, a sua força e a sua fragilidade. E são, como igualmente se diz, objectos profanos.
Não há diferença entre o profano e o sagrado, nomes inventados, como tantos outros, pelo homem, para iludir a sua ignorância e preencher o intervalo, a que alguns chamam vazio, que há entre a vida e a morte. Por isso os próprios ídolos, que apenas valem como imagens artificiais projectadas no espelho da arte e da vida, aí encontram, umas vezes, a sua força, outras, a sua fragilidade. São como deuses sentados à entrada da morte e velando o seu próprio cadáver.

*****

CIÊNCIA

O crescimento do homem pôde algumas vezes medir-se pelo comprimento ou altura das túnicas. O das mulheres sempre se mede pela roda das saias e dos seios. Ou pela altura das árvores e a fundura dos lagos que habitam no seu corpo.
******

MÁSCARA FUNERÁRIA
DE TUTANCÁMON

Solene, entre o relevo
das serpentes que lhe guardam
o viço constelado,
é apenas uma esfinge,
o seu perfil. O cinzel
que lhe esculpe o lume
e o marfim do rosto. Tem
o azul como estigma, e o brilho
jovem que lhe doura
a cabeça é só
o esplendor do tempo,
não o seu. Também
de azul e ouro
se tingem as tardes
de outubro e são elas
que trazem atrelado o carro
funerário onde se abrigam
as máscaras dos vivos. O rosto
duvidoso e incorpóreo
dos enigmas sem data.
****

Pequenas Coisas


Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
***

COMPROMISSO

Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.

**

A MESMA CANÇÃO

A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.

*

Indício

Quando alguém morre
apuras o ouvido
em busca dum indício.

Fecha depressa
a janela
antes que ouças
dizer
que é por ti
que os sinos dobram.


Assim São as Algas. poesia 1950-2000, Albano Martins, Campo das Letras: 2000, p.24, 57, 105, 142, 243, 245-6, 251, 259, 277, 278, 348, 408, 411, 412, 416

2 comentários:

Paula de Medeiros disse...

Ótimo blog, muitas leituras que eu não conhecia. Sucesso!

tulisses disse...

obrigado estamos sempre a descobrir coisas belíssimas, entre os livros!