é claro que sei dizer palavras  calmas
e amar devagar os que chegam a  meu lado
e recordam o meu nome de todas  as maneiras
com que ao redor da vida o foram  construindo
é claro que sei inventar  cantigas breves
das que à meia-noite perdem as  notas mais vibrantes
 quando fogem precipitadamente  dos nossos bolsos
é claro que sei voltar a casa e  abrir a porta
 e fingir que tudo está perfeito  sobre a mesa
 e os objectos guardam os lugares  de sempre
 e eu continuo na moldura com um  riso de quinze anos
 tropeçando no teu ar sério quase  a sair do retrato
é claro que sei passar os dedos devagar pelo teu corpo
 nas noites em que chegas e dizes  já não chove
 como se colocasses no meu colo  uma prenda de natal e pudesses apagar a  tempestade
 no brevíssimo instante em que a  vida se resume
 aos nossos olhos  tentando
 acreditar que é  cedo
é claro que sei esperar por ti
 sabendo desde sempre que não  vens e mesmo assim
 escolho sem sobressalto a música  perfeita
 de te acolher no sono com o  enevoado rumor
 de todos os encontros  improváveis
é claro que sei as palavras mesmo que as não diga
 que misturas ao longe com os  afiados gumes
 com que tentas a custo  perdoar-te
 as horas roubadas a todos os  seus legítimos donos
é claro que sei fechar as janelas às armadilhas
 que as noites constroem dentro  dos teus medos
 e donde não consegues  regressar
 e com sorte encontrar numa  cómoda qualquer coisa tua que  esqueceste
 na pressa da saída e  pensar
 que foi por mim que ela  apareceu
 em tão estranho  lugar
- mas quando entre os ruídos da noite
 a tua ausência é a única divisão  da casa
 que razoavelmente  partilhamos
 tudo isso serve desculpa de  muito pouco
******
eu gostava de poder dizer
que entrei no teu corpo como um pássaro
espreitando através de invisíveis ruínas
e que o som da tua voz bastava
para me salvar
mas de anda serve inventar palavras
quando as palavras que inventamos
não passam de frágeis lugares de exílio
dos gestos inventados fora de horas
delimitando o espaço de tantas mortes prematuras
de que jurámos ressuscitar um dia
- quando os deuses se lembrassem
de acordar ao nosso lado
Alice Vieira, Dois Corpos Tombando na Água, Lisboa: Caminho, 2007
 
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