«se um dia me deitar a este poço, não será para me matar, acredita, mas para agarrar mais depressa as estrelas»
Juan Jamón Jiménez, Platero e Eu
Juan Jamón Jiménez, Platero e Eu
Da maneira como as pálpebras teimavam em cair, como que puxadas por algo invisível, firmadas por um peso crescente e irresistível, ele deveria estar próximo de os fechar a sério. Ainda assim, ele tentava evitar que isso acontecesse a todo o custo: com, a mão livre, dava pequenos estalos na cara, esfregava os olhos, primeiro um, depois o outro, e arregalava-os, mas ainda assim, estes teimavam em fechar-se sedutora, irremediavelmente. O frio entorpecia os gestos e as bofetadas eram menos violentas com o tempo, e o esfregar os olhos era quase uma carícia desconexa, distraída, vacilante. As pernas entorpeciam e deixavam aos poucos de obedecer à sua vontade de as pendular para as aquecer. Por um breve momento, os olhos fixaram-se no mar. A luz da lua coava-se nele, reflectida. Era a única luz que impedia o avanço total das trevas, mas nos olhos dele nem sempre distinguiam já a luz da sombra e do medo. Os gestos pararam, os olhos foram-se fechando e reparou então, no momento exacto da transição de mundos, que não ouvia nada, nem sequer os ramos das árvores. Nem sentia o vento que via nas folhas. Nem cheirava nada, como se o mundo estivesse limpo de tudo. Mas de um momento para o outro, tudo voltou ao mesmo tempo, recordações do imediatamente anterior, da vida passada, do presente momento no meio de uma batalha estúpida em que se metera por desgosto amoroso e que agora lhe custava a vida, pois tinha consciência agora, agora que também os sentidos lhe voltavam com a dor imensa que dividia o seu corpo em dois, que não poderia nunca resistir ao ferimento que lhe desfizera a perna direita contra a fachada da igreja gótica que se erguia abruptamente sobre o desfiladeiro. E não pendulava as pernas porque não as tinha, pelo menos as duas. E sentiu de repente o odor dos suores, do mijo, dos corpos mortos, do fim da vida que sabia estar algures por ali, à sua volta. A Morte saciava-se das vidas que ia recolhendo, sem fim. A noite erguia-se do fim do mundo e avançava para o outro lado. Mas havia lua e estrelas. Havia uma luz que impedia a escuridão. Para ele era bom, sempre via por onde podia andar ou não, quando conseguisse ganhar algumas forças, embora assim pudesse ver também os cadáveres de amigos e companheiros. A lua começava a esconder-se atrás da igreja, que era agora uma ruína, feita de destroços de pedras, madeiras, corpos... As estátuas austeras espalhavam-se grotescas pelo que restava do corredor, parcialmente destruído, com os granitos decompostos nos seus elementos misturados com sangue. Um dos braços da cruz já não existia, enquanto a outra, ironicamente, se mantinha intacta, embora coberta de pó. Dessa parte da igreja vinha alguém agarrado ao um braço. Os olhos do primeiro, molhados de lágrimas, fitavam o céu e a sua escrita brilhante. Os sentidos tinham-se fechado novamente, concentrados na vida passada. Não vás. Não precisas de ir. Esta guerra não tem nada a ver connosco. Bem sei que tens um coração do tamanho do mundo a dobrar, mas não precisas de ir. Ouve-me, meu filho, não vou conseguir perder-te por uma coisa que não nos diz respeito. Esta não é a tua guerra, esse não é o teu país. Nos olhos dele brilham agora as lágrimas da mãe, escorrendo agora pela sua face. Tinha noção de que tudo não passar de uma forma heróica de suicídio, sem que ninguém percebesse a atitude como uma desistência da vida. Lutar, lutar pelos oprimidos, pela liberdade! Grande disfarce para a cobardia de lutar pela vida. O segundo atravessou a igreja com o cuidado de não pisar mortos nem feridos, embora não o tenha conseguido sempre, e não tenha encontrado feridos até chegar às portas, escancaradas mas ainda no sítio, como se demarcando uma posição de impenetrabilidade a quem quisesse passar. Mas acima delas apenas um resto da fachada de pedra e um buraco enorme onde antes estaria uma rosa de vidros coloridos. Repara então no companheiro que olha o céu e tem lágrimas nos olhos. Emocionado por não ser o único sobrevivente, esquecido do seu braço estropiado, tenta ajudar o primeiro a erguer-se, como a afugentar a Morte dos seus olhos. Caramba, que combate, hã companheiro! Mataram toda a gente, os cabrões. E destruíram a igreja, os filhos da puta. E olha que era uma igreja bem antiga… Um amigo meu, professor de história e que morreu noutra emboscada, dizia que esta igreja era das mais importantes de há uns séculos atrás… Agora não é nada, nada sobrou a não ser aquela capela ali, vês? Falava à toa, empurrando as palavras e as frases como ia empurrando o tronco do companheiro lívido e a tremer de frio ou de febre, como se ao falar assustasse a Morte que por ali rondava. Nós somos aquela capela, colega. Connosco a Morte não quer nada, ainda não é a nossa vez, ouviste? Caramba, que medo tive durante o ataque! Até me borrei todo, não sentes o cheiro? Não faz mal ter medo, todos temos, não é verdade? Pois… Mas olha para mi, deixa lá o céu estar sossegado, ainda não é a nossa altura, ouviste companheiro? Possa, nem o teu nome sei… Eu sou o Pablo, e tu como te chamas? Breve silêncio, entrecortado por risadas nervosas de Pablo e gemidos do primeiro. Deixa lá, isso não é importante, quando estiveres bem lá nos falámos e depois agradeces-me… Vá, não é para aí, anda para dentro, caramba… Não tens uma perna, pois não, mas isso não faz mal nenhum, apoias-te a mim, mas deixa-me primeiro atar aqui qualquer coisa… Se quiseres arrasto-te, mas só com um braço também é complicado. Já está, bem, anda. Lá para dentro, colega, sempre está mais quente e podemos esperar que nasça o dia para ver se pudemos fugir, se os cabrões não estão por aí a vigiar para ver se fizeram bem o serviço… Chiu, está calado, que se estiverem aí dão conta de nós… E calou-se ele próprio, ao aperceber-se de que era o único que realmente estava a falar. Começou a arrastar o primeiro, que tentava reagir e parecia insistir na direcção oposta. O cheiro nauseabundo ia aumentando à medida que conseguiam percorrer a igreja. Subitamente, ruídos de carros lá fora ecoaram pela igreja. Foda-se, são eles! Depressa, deita-te para aí, finge-te morto Atirou-se para o monte de corpos, escondendo-se entre um companheiro morto e um banco. O outro deixou-se cair entre os cadáveres, mais por estar sem forças do que por temer a Morte. Uma luz varreu então a igreja. E uma voz disse que uma das capelas ficara ilesa. Entraram cinco ou seis soldados, pisando o inimigo, por vezes certificando-se de que estavam mesmo mortos. Tudo certo, tudo como planeámos. Agora é só encontrar a entrada para o túnel. Quando o encontrarem, avisem o coronel para ele dar início aos trabalhos de remoção do ouro. Os outros assentiram e dispersaram pela capela coberta de pó. No altar, um S. Miguel Arcanjo olhava com seus olhos azuis de estátua fria um diabo retorcido nas chamas a seus pés que demonstrava mais receio da espada cravejada de pedras do que o fogo eterno. Se o tal amigo de Pablo ali estivesse, explicaria que aquela estátua e a espada eram posteriores em muitos séculos à construção da igreja, mas não estava, e ninguém pareceu reparar na riqueza da espada coberta de pó. Pablo não respirava, tentando sobreviver ao cheiro e fazer não notada a sua vida. O primeiro já não ouviu a correria dos outros, a sua descida ao túnel. Mas Pablo estava atento, e mal viu que todos desapareciam inadvertidamente no túnel, correu como pode, já sem se incomodar muito com o pisar dos corpos, e tentou trancar a entrada do túnel, o que só conseguiu por, num momento de desespero, se ter virado para S. Miguel a pedir auxílio, que surgiu em forma de espada, que serviu de tranca na perfeição. Quando os inimigos se aperceberam que estavam presos e barafustavam atrás da pedra e da espada cheia de marcas brilhantes nos sítios em que as mãos tinham tocado, já Pablo e o primeiro estavam a chegar às portas. Pablo tê-las ia fechado simbolicamente, não tivesse de largar o companheiro e afastar os corpos de outros companheiros. Ajudou o outro a entrar num dos carros e tentou ligá-lo. A noite ia acabando. Pelo buraco da antiga rosa da igreja podia ver-se ainda a lua e algumas estrelas polvilhavam ainda o céu. Queria ir ter com elas. Disse o primeiro, numa voz débil. Quê? Nem brinques, não vais ter com estrelas nenhumas, ouviste? O carro há-de pegar e vamos fugir daqui… e aqueles cabrões que morram ali fechados! Vieram buscar ouro! Ouro, que ouro? O meu amigo professor de história realmente falou-me disso, mas disse que já tinha sido levado para um sítio, um museu, acho eu, por isso lá não devia estar nada… Raios partam a filha da puta da vida! E ria, da ironia, do nervoso, da tragédia, do seu corpo coberto de fluidos estranhos, da dificuldade de manobrar um carro só com uma mão, de ter escapado com um companheiro. O primeiro tinha o olhar fixo no céu que via pelo vidro da frente. O outro falava sempre, era a sua maneira de espantar o medo e a Morte. Subitamente, reparando no seu companheiro, apercebeu-se que estava no fim. Ó caralho, não me morras agora! Então, vá lá! Já escapámos, vamos direitos para o hospital, denunciamos estes cabrões e são fuzilados… Até podemos ser nós a matá-los, imagina o gozo… Não é gozo nenhum, é verdade. Acrescentou ao ver o rosto do companheiro mais sereno e ausente. Os seus olhos foram-se fechando com uma força sedutora e irresistível. Não feches os olhos, não agora, companheiro! Não agora! É só mais um bocado. E largou o volante para, com o único braço que lhe sobrava, agitar o companheiro e trazê-lo à vida. Foram uns segundos apenas, mas foi o suficiente para que o carro se despenhasse pelo desfiladeiro num mergulho perfeito de encontro às estrelas que também habitavam o mar. Estava a ver que não, sorriu a Morte.
1 comentário:
Belo blog, Tulisses!
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um abraço,
Marcelo.
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