quarta-feira, maio 07, 2008

II 18. A cidade



O espírito arrebatou-me e levou-me para a porta oriental do Templo de Javé, isto é, a porta que dá para Oriente.
Ez, 11, 1

Subia o íngreme caminho em direcção à entrada oriental da cidade. Levava consigo apenas a sua sombra escura, despida. Das ameias mais próximas era visível o seu esforço na caminhada, pelo passo cambaleante e o corpo meio curvado, mas não era visível a pele queimada e crestada, os pés esfolados, os olhos cobertos de rios de sangue, o rosto coberto de suor e pó que se tornavam barro modelado de figura humana. De homem. De homem sem roupa e sem alma. Mas ninguém o viu chegar à porta oriental porque toda a cidade fora convidada para o casamento do Princípe-Futuro-Rei. A cidade acordara já pronta do trabalho da véspera, limpa e embelezada pelos panos bordados e flores colhidas nos campos em redor. Servia-se então um banquete de honra a toda a população, incluindo os vigias, menos ele, vigilante mais distante que avisa dos perigos antes de todos os outros através de fumo, fogo, sons ou o que for mais conveniente. Dessa vez o mais conveniente foi a corrida que o invasor lhe concedera, após o ter privado de tanta coisa que o Homem considera dignas. A corrida era excessiva ao seu estado de irmanação com o solo. Mas o vigia dos longes não se preocupava já consigo nem com a vergonha de estar nu e nu ir aparecer em frente de toda a gente ou ter de contar o que lhe fez o invasor, mas sim em contar o que ele iria fazer à cidade toda. Subiu o íngreme caminho e chegou à porta oriental; estava fechada. Com a pouca força que ainda tinha bateu-lhe e chamou para dentro. De lá não obteve resposta, apenas o barulho normal que faz uma cidade numa festa real, aproveitando a altura para alimentar corpo e alma. Arrastou-se ainda pelo círculo das muralhas, procurando a porta seguinte, pensando que em alguma delas teria de estar alguém para dar o alerta. Mas também na outra não estava ninguém. Mas a sua força interior parecia ser maior que o estado em que se encontrava e conseguiu chegar à terceira porta, também ela encerrada na sua madeira forte e impenetrável. Na linha do horizonte, entre os arbustos despidos e a terra seca, o invasor vinha já. O seu horror dominou-o por momentos. O cansaço, os nervos, o desânimo, a impotência. Lá de dentro vinham risos, gargalhadas, falas e música ao fundo. Ouvia-se também o tinir dos talheres na louça. Sentia-se o cheiro da carne assada. Também o vigia dos longes sentiria o cheiro de carne na cidade em chamas e ouviria os gritos e o choro dos sobreviventes, se entretanto não se tivesse irmanado do chão e nele se entregasse, imperfeito.

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