Tenho andado um pouco à margem de toda a contestação (justíssima) dos professores. E de outras coisas também, como do acordo ortográfico. Mas este era necessário e já era tempo de vir e ser aplicado a sério. Provavelmente discordarei de uma outra coisa, outras muitas nos parecerão estranhas («Não há, no fundo, nenhuma ideia a que não nos habituemos» diz Camus em
O Estrangeiro) mas o trabalho de unificação possível e de adequação da ortografia à pronúncia era necessário. E estou tão de acordo que a minha dissertação de mestrado, se me deixarem, será já feita com a nova ortografia. E a
Texto Editores tem já material pronto para comercializar a partir de amanhã.
Quanto ao primeiro assunto, apesar da minha pouca atenção ao mundo exterior nos últimos tempos, só se estivesse morto não teria ouvido falar. Eu estava em Lisboa quando foi a manifestação, mas vim-me embora quando começou - tinha de ir para o Porto. Muitos debates na televisão, na rádio (que não vi na íntegra porque me irritam algumas atitudes que só poderei apelidar de "teimosas"). Todos os dias nas notícias se fala do assunto. E faz capas de jornais. Um problema sério, a sério. E há na blogosfera (obrigatório passar por
Felizes Juntos, que possui textos interessantíssimos sobre o assunto, bem como links e uma caixa do google com selecção de alguns importantes posts pelo país fora, mas também o
Rabiscos e Garatujas, com exemplos do dia-a-dia de uma professora que sabe reflectir sobre a sua profissão ou situação) um debate muito interessante, com testemunhos de professores, de alunos e pais, de toda a gente que de uma forma ou outra estão implicados no processo. Eu estudei para ser professor mas não quero (só do Ensino Superior), já disse algumas vezes. Não é só por causa disto, mas por tudo. Mas compreendo quem trabalha no sector e gosta(va) de o fazer. (va) porque agora o professor não ensina, o professor preenche papéis, é avaliado por colegas tão ou menos competentes que ele (quando por milagre são da mesma área já não é mau), e tem de passar os alunos porque sim, porque se não cai-lhe toda uma imensa burocracia por cima e uma avaliação mais fraca (Devia ter ido correr atrás dos seus alunos se eles não queriam ir à sua aula; Mas está parvo ou quê, caro colega? O aluno já sabe o Presente, os Pretéritos e o Fututo, não precisa de mais para passar para o 10.º ano!), o professor que vai avaliar dispõe de todo o tempo do mundo para preencher devidamente as burocracias - já trabalha há tanto tempo que não precisa de preparar aulas, diz a ministra (sinistra) da educação (avaliação) - é claro, estes professores ou não querem saber das aulas para nada ou então vão andar a matar-se ainda mais, se quiserem ser competentes e rigorosos em todas as actividades que têm de desenvolver. E não haverá vinganças, ajustes de contas, nada disso. E umas três aulas são suficientes para a avaliar um processo inteiro, claro - correu mal hoje, que pena! Professor, seu mandrião, trabalha umas horitas por dia e ainda se queixa! Olhe que eu sou funcionário público, trabalho das nove às seis e não me queixo (ou queixo, mas pouco, afinal ainda posso estar todo o dia sentado em frente a um computador ou a atender gente que só aturo durante cinco minutos), agora você só tem de estar umas horas na escola: esteve seis horas de pé, quase sempre a falar ou a ouvir atentamente o que os seus alunos dizem, ainda esteve a corrigir trabalhos, planificar aulas para o dia seguinte, foi chamado para uma aula de substituição, teve uma reunião, tentou organizar exercícios de recuperação na escola mas não conseguiu porque não tinha onde trabalhar porque na sala dos professores estava muita gente a conversar e na biblioteca não tinha espaço? Temos pena, a sério. É que em muitas das outras profissões o trabalho fica no trabalho, nesta vem para casa. Corrigir trabalhos e testes, desenvolver esquemas mentais enquanto se cozinha, antes de dormir preparar tudo, a ver se está lá: objectivos, material/recursos, actividades, encadeamento lógico dos assuntos da aula... E tentar arranjar forma de lidar com o filho da &#%* que arranja sempre maneira de desiquilibrar a aula. Avaliação sim, acho bem, muito bem (tal como os exames que inventaram agora, mas isso são outros assuntos). Porque há muitos energúmenos por aí (alguns infelizmente já passaram a titulares). Mas no meio do ano parece-me muito inoportuno, e em moldes de empresa de produção parece-me ridículo: não estamos a fazer camisas cujo produto final pode ser avaliado em termos de quantidade e de qualidade: fizemos quinhentas, só duas têm defeito, sabendo que o sucesso só depende da matéria usada e do nosso trabalho. Não, aqui estão envolvidos professores, pais, organização escolar e, mais importante, alunos - que não são matérias absorventes nem matérias totalmente domináveis. Deveriam, mas não são.
Deixo só, em tons de brincadeira e para aligeirar, a sugestão de leitura de uma das novas obras incluídas no Plano Nacional de Leitura (recebi por email com esta inclusão, mas é do blog
we have kaos in the garden, referente ao dia do livro... e acho que vale a pena ).
«Apresentamos aqui, em primeira edição, a obra-prima de Maria de Lurdes Rodrigues, Mona Vazia, ou Como lixei a escola pública. Aplaudido pela critica mais liberal, esta obra mostra como em apenas dois anos se pode abrir o caminho à futura gestão privada das escolas e como se transformam os educa-dores dos nossos filhos, os professores, em inimigos públicos da sociedade e culpados do estado em que se encontra a educação em Portugal».
Tenho de acrescentar isto. É que me dá vontade de bater a quem escreveu isto e a quem pensa assim. Pela leitura do post e do blog percebe-se que o autor não deve ter tido grandes professores. Pelo menos de Português: acentos, regências verbais, pontuação, mas este excerto ultrapassa-me: «não cumplem a Ministra.Cumpem-se a VOCES !!!» - sem comentários, ou antes, talvez comente noutro post este magnífico post em termos de correcção linguística.
Eu sei que isto está grande (bolas, às vezes quando começo é difícil parar) mas deixo um excerto de A Peste, de Camus:
«Está certo. Mas não se felicita um professor por ensinar que dois e dois são quatro. Felicitar-se-á talvez por ter escolhido essa bela profissão. Digamos, pois, que era louvável que Tarrou e outros tivessem escolhido demonstrar que dois e dois faziam quatro, e não o contrário, mas digamos também que esta boa vontade lhes era comum com a do professor, com a de todos aqueles que têm a mesma coragem que o professor e que, para honra do homem, são mais numerosos do que se julga, ou tal é, pelo menos, a convicção do narrador. Aliás, esta compreende muito bem a objecção que podem fazer-lhe, ou seja, que estes homens arriscavam a vida. Mas chega sempre uma hora na história em que aquele homem que ousa dizer que dois e dois são quatro é punido com a morte. O professor sabe-o bem. E a questão não é saber qual é a recompensa ou o castigo que espera este raciocínio. A questão é saber se dois e dois são ou não são quatro. Quanto àqueles dos nossos concidadãos que então arriscavam a vida, tinham de decidir se estavam ou não na peste e se era ou não necessário lutar contra ela.» (ed. Diário de Notícias, colecção Prémio Nobel, p.96-7).
Espero que se lute contra a peste como o no livro se luta, como se pode, com a dignidade que nos define.
3 comentários:
Querido T., mas que texto excelente que tens aqui! Muito obrigada pelas linhas, pela solidariedade, pelos links, pelas citações, por tudo. A destacar no meu Rabiscos! Beijo.
merci pour le éloge!
baiser,
tiago
Tulisses faço minhas as tuas palavras,quem pensa assim, sensivel é.L'extrait d'Albert Camus est un exccelent choix pour illustrer et conclure ton intervention...
Retribuons les éloges à nos profs ,car ils(Denise et beaucoup d'autres) le meritent amplement.
Manu
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